Contando o Tempo
Translúcido, calculo o tempo que me resta.
Não é muito. Há uma travessia e sacio a
minha sede nas águas cristalinas de um rio.
A jornada prossegue. Não há como retroceder.
Visões se multiplicam. Homens eretos, homens caídos.
Não há como não vê-los.
As águas correm em ritmo acelerado
e os sons se confundem. Ora sol, ora chuva.
Há pegadas. Muitas. Certamente algumas
são minhas. O orvalho fez nascer em mim
um campo de amor, denso e florido.
Quero amar mais ainda. Nunca é demais.
Sonho com a vida eterna. Tão certa e alcançável
como as páginas de um livro escrito por mim somente.
Há um condutor. Ele vai à frente abrindo o caminho
para que eu não tropece e caia.
Mas se cair, Ele me ergue.
Ao longe um clarão e uma revoada de borboletas.
Como se fosse primavera. E já é outono.
Franzo a testa e como o pão com o suor do
meu rosto que ainda brilha a cada amanhecer.
Contemplo a luz que cruza a ponte e se esconde
atrás das colinas, enquanto pombos sobrevoam
a praça com seus arrulhos.
É ora de refletir. Dobro os joelhos em contrição.
Hoje não me lembro se abracei alguém.
Saí pelas ruas à procura de quem abraçar.
Talvez alguém de sangue azul, de olhos azuis.
Falta-me inspiração. Quem sabe mais uma
incoerência dessa carne destinada a putrefação.
E a noite finalmente vai chegando.
Falta-me algum tempo. Não muito.
Prossigo. Mesmo que o rio seque, que as lágrimas
sequem, mesmo que na videira não haja fruto,
mesmo que o vale seja o da sombra da morte.
Há uma vida à minha espera onde não terei
que contar o tempo.
Publicada no livro "Horas Verdes" - 2009