COLO DE ANJO
Uma versão Lacerdiana de "Pegadas na Areia" do grande Malba Tahan
Certa noite andava eu
Numa poeirenta estrada,
Matulão com pouca roupa
No meu colo atravessada;
Sem uma casa por perto,
Sem prumo, sem rumo certo
A viola pendurada,
Sozinho em pleno deserto
Prá mim nada dava certo
Nesta vida atribulada.
Notei a marca estampada
De um rastro que me seguia
Mas quem andava ao meu lado
Só o rastro aparecia;
Fiquei todo arrepiado
Por constatar assustado
Um fato raro e incrível,
Dois passos me acompanhando
Como se ali, caminhando,
Houvesse alguém invisível.
Como se fosse possível
Alguém ali me escutar
Gritei alto: “Quem me segue
Que não quer se apresentar?
Quis correr amedrontado.
Mas uma voz ao meu lado
Falou-me aos ouvidos meus:
“ Não grites assim comigo,
Eu sou teu único amigo,
Seguidor dos passos teus.
Por este mundão de Deus
Já amarguei minha dor,
Me chamavam mentiroso,
Mas eu tinha o meu valor;
Quanto mais eu padecia
Mais a minha fé crescia,
Sem nunca desanimar,
Pois, como tu tens agora,
Tinha eu estrada afora
Alguém prá me acompanhar.
Por esse alguém me mandar
É que agora estou aqui,
Como sombra dos teus passos
Na poeira a te seguir.
E nunca te deixarei,
Sempre te acompanharei
Seja qual for sua estrada,
Mesmo ela sendo comprida,
Tortuosa e dolorida,
Sem nunca te cobrar nada.
Eu sou teu Anjo da Guarda”.
Disse isso e se calou.
Desde esse dia seus passos
A me seguir continuou;
E eu fiquei acostumado
Com aquele rastro ao meu lado
Como um fiel seguidor,
Em toda estrada que eu ia
Até que chegou o dia
Que tudo se transformou.
A minha vida mudou
Quando encontrei Iracema
De muita simplicidade
E uma beleza extrema;
E tivemos um filhinho
Para enfeitar nosso ninho,
Minha vida triplicou,
Meu lar humilde de outrora
Era só riqueza agora
De alegria e de amor.
Só uma coisa me estranhou:
A partir daquele dia
Não vi mais o par de rastro
Que antes sempre me seguia.
Quando mais eu precisava
Aquele que me amparava
Me deixou sem despedida;
Se não quis mais me ajudar,
Por certo foi procurar
Outra alma triste e perdida.
Mas como tudo na vida
É efêmero e passageiro
Um dia minha mulher
Cai em grande desespero.
Meu filhinho adoentou,
Pouco tempo mais durou
E se foi sem despedida,
Logo aquelas criaturas
Que eram minha fartura
Foram embora desta vida.
E a vida da minha vida
Desfaleceu de verdade,
Coração ficou capenga
De tanta dor e saudade.
Abandonado e perdido
Lembrei do rastro sumido
E gritei desesperado:
“Anjo meu, cadê você
Que jurou me proteger!
Veja agora o meu estado!
Sozinho, desamparado,
Quando mais eu te preciso
Só vejo o chão ao meu lado,
Teu rosto não visualizo.”
E aquela voz sonorosa,
Mais doce e melodiosa
Ressoa em minha presença:
“Estou aqui, companheiro,
Prá que tanto desespero?
Onde está a sua crença?
Recobre sua consciência,
Examine teu calçado,
Olha o passo onde tu pisa
E o rastro que tem ficado,
Examina traço a traço,
Veja agora que teu passo
Não pode te acompanhar,
Lembra o rastro que te guia,
E os passos que te seguia
É o que vais encontrar.
Nunca vou te abandonar
E nunca te abandonei,
Nem quando você casou
De te amparar eu deixei.
Hoje, conseqüentemente,
Que ficou só novamente,
Me insultas e eu não me amolo,
Mas quando você casou
Que sua vida triplicou
Eu te carreguei no colo”.