Tragédia
Tragédia
Foram algemados
por delitos não cometidos
e eu transgredi
e jamais me puniram.
Cobriram-se de capacetes de aço
para livremente falarem
e eu subi em palanques suntuosos
e expus minhas idéias nem sempre coerentes.
Embora piedosos e crentes, desconheceram templos
e eu os freqüentei quando bem entendi.
Milhares formam filas quilométricas
em hospitais públicos por uma reles consulta
e eu, saudável, possuo médico particular.
Não sabem o que é um amigo de verdade
e eu tive tantos ombros consoladores.
Não saíram de quartos úmidos e sombrios
e eu andei por três continentes, quatro dezenas de países.
Eram cegos de nascença
e eu tantas vezes cerrei os olhos,
fingindo não ver.
Surdos, homérico sacrifício
para entenderem uma palavra monossilábica
e eu todas as melodias escutei.
Não sabem distinguir as letras do alfabeto
e eu li todos os livros que quis.
Não conseguiram escrever uma minúscula história
e eu fiz de minha vida vários romances.
Nem uma única refeição têm garantida
e eu deixo sobrar comida no prato.
Dormem sob marquises e viadutos
e eu descanso este corpo saudável na maciez de um colchão.
Jamais sonharam em cores
e eu voei, liberto, com os próprios sonhos.
Eram órfãos, eram sós
e eu, alem dos pais naturais, tive outros por estas andanças.
Não suportam o frio que os derretem,
não agüentam o calor que os assam
e eu posso ligar o ar-condicionado na temperatura ideal.
Nem ao menos um carinho pago de uma mulher experimentaram
e eu tenho uma a meu lado, doando-se por inteiro.
Continuam desempregados
e eu posso recusar empregos.
Não sabem o que o que é descanso,
E eu passeio, me divirto, me relaxo.
NO ENTANTO,
aqueles acharam um remate para seus contratempos
e eu nesta incredulidade oceânica, neste vazio bíblico,
nesta intransigência só minha,
vivo a tragédia perpétua.