um olhar sobre a infância...

       AQUELA ESTRADA DE CHÃO  BATIDO
                                

       Descendo morro, fazendo curva, passava a estrada na minha infância, todo mundo que nem eu, viu um dia aquela linha que sumia lomba acima pra cidade mais próxima, e aí começava o mundo, e o mundo era algo que além de redondo era de uma tal imensidão que por mais que se tentasse não havia jeito de saber quanto, era como muitas e muitas vezes uma cidade grandona que nem Porto Alegre, e o Rio Grande o quanto seria... seria muito longe pra lá da capital, ela pensava em uma estrada só indo e indo, e chegando em Cachoeira, onde morava um parente da dona Elvira, também Santa Maria, Pelotas, Canela, Gramado, os bois que desciam a serra trazidos pelos tropeiros passavam no estradão, em frente a sua casa, e o Brasil, minha nossa, o Brasil era um enorme "B" com tantas florestas e rios e índios ainda, e o Rio de Janeiro que os ricos visitavam indo de avião, as fotos nas revistas, e Brasília, JK, o mais longe que já tinha ido fora mesmo Porto Alegre, ia às vezes com a avó na casa da tia, tinha sorte, outras crianças nem conheciam...depois tinha uma coisa que as rádios só tocaram músicas de hinos durante dias e aí não tinha aula, e o pai disse que iam largar bombas no palácio Piratini e que o governador estava lá, sentia medo, mas era tudo tão longe, e aí a vó falou que o tio Chico se alistou como voluntário pra uma tal revolução do governador. Ela pensou em como o tio não tinha medo de querer lutar, ela sabia que o bisavô tinha ido pro Paraguai, coisa que o vô contava e que guerra era muito ruim, pois os homens morriam e matavam, e que o bisavô tinha ido mocinho só porque quis ir, lutar pela pátria, mas o vô também falou que ele tinha dito que nunca um filho dele iria para uma guerra e ela ficava tentando imaginar o quanto seria ruim tal coisa pra ele dizer isso, e pensava, pensava muito em por que a mãe não deixava ela dar a mão pro tio Lúcio, ele era tão alegre, e dançava com ela, e vinha tão pouco, sempre rindo, e o pai tinha dito que ele vinha pedir dinheiro e dinheiro pra ele era dado, não emprestado. Mas o pastor disse no culto infantil que Jesus amava a todos, será que todos, eram aqueles que iam à igreja? Mas só a mãe e a vó iam tomar Santa Ceia na Páscoa e a igreja parecia mais um lugar de passeio, as pessoas bem vestidas, o domingo da Colheita, todos levando alguma fruta, verdura ou alimento pra deixar no altar, e no final da missa, cada pessoa levando algo consigo. Só na casa da outra, a vó Luciana é que tinha aqueles quadros, gostava da Santa Teresinha e por que na sua casa não tinha os tais santos? E doía sempre aquela surra de varinha fina de quando era mais pequena, nem lembrava direito, que ela não conseguia pensar porque aí doía sem parar, mas agora sabia que não podia brincar com o primo... e por que uma coisa assim que até era boa, não doía, não machucava, por que não devia?... e agora tinha medo do primo, muito medo e nem conseguia falar, como falar algo que não entendia?...um
grande fogão fumacento, o pão no forno de barro e tijolos, a longa saia da avó onde se refugiava, a porta da cozinha cortada ao meio que dava para o quintal, uma tarde de domingo qualquer, seu pai seu avô e ela atenta, o picolé de framboesa era vermelho e doce e a conversa dos adultos um deslumbramento, as mulheres em grande prosa, vai brincar lá fora menina,que tristeza, perder o melhor dos assuntos , que raiva! E brincar de esconde-esconde com aquele recurso infalível: ficar sempre perto do "ferrolho" tendo feito a volta na casa, e chegado até o canto próximo da grande árvore de "fechar" e só esperar o outro afastar-se , correr, e " bati!! ... Nem tinha graça... mas não gostava de "fechar", pois aí se distraía, não pegava ninguém... que graça ficar caçando os outros, melhor era a emoção de se esgueirar silenciosa e resolver tudo num só movimento certeiro. E na rua comprida de chão batido, por onde às vezes passavam boiadas, passavam também os operários das fábricas, rua acima rua abaixo. Lá vem a Ana e a Teresa, com seus vestidos floreados, e o nego Dário, tão alto, tão magro, parece feito de elástico... E o Polaco, a Dona Helga, a Marica e o Peludo, isso é nome? Havia aquele magrela feito um S, parecia caminhar de lado, com seu chapéuzinho preto de aba curta, Cartolinha, ô Cartolinha, e lá ficou o apelido. E todos daquela família, foram assim batizados, ficou a família toda igual :eram todos os Cartolinhas... -Corre alemão batata, come queijo com barata...!!
A moça que cantou na rádio, a músca que falava em Brasil, virou assunto da hora , a moça alta e pernalonga, muito branca, empertigada,cabelos castanhos, pra sempre ficou a "Brasil". Aquela gente que ia rua acima, rua abaixo, bater sola, cortar couro, pregar tachas, lixar, chanfrar, passar cola e tanta coisa pra o sapato ficar pronto...Ainda passa diante de seus olhos, em silêncio de cinema mudo, lenta filmagem, poeira dos caminhos, vento levando as folhas de tantos outonos, as longas pernas da "Brasil", nunca vira moça tão alta, a nega Chica arrastando os chinelos e balançando o corpo enorme, e ela corria porque diziam que pegava as crianças, e o vestido de listinhas preto e branco que viu passar e pediu pra sua vó Luciana costurar e ela fez igualzinho, por que ela quis aquele vestido de listinhas, por que quis outras coisas e tantas que não ganhou? Manhãs de geada e mãos vermelhas de frio, nariz gelado, ameixeiras , o carro de rodas de madeira feito pelo pai, descendo a lomba do campinho, ela e a Maria, doidas, travando as rodas com as mãos, enfiando pra dentro da goiabeira, quanto riso! E os bodoques feitos às escondidas, tão bons quanto os dos meninos, houve um dia lá no sótão, disparou contra a inimiga, a tal Maria... cheiro de café, mate com leite, pendurar-se na corda do sino que a outra tocava às seis da manhã, ao meio dia e às seis da tarde, aquele cheiro de madeira que descia gelado pela abertura lá em cima, subiam num arrepio, seria como ir para o céu? E à tardinha o alto-falante do cinema anunciando os filmes na voz fanhosa do Tom Mix, aquele rapaz filho do dono que nascera mirrado, era fininho e miúdo mesmo adulto, e um dia o fiscal não quis deixar entrar, pois o filme era impórpio pra menores de dezoito... o piano do clube naquele palco cheirando a mofo, cenários antigos e assustadores, de um tempo em que havia grupos de teatro que se apresentavam ali... como teria sido? Já o piano da professora tinha um cheiro bom, a casa muito limpa tinha um perfume desconhecido pra ela que morava em uma velha casa do tipo "enchaimel", o piso lavado com água e sabão, as paredes nuas, poucos móveis antigos, teias de aranha esquecidas, água de poço, uma porta de um armário embutido embaixo da escada de madeira que dava pro sótão, que parecia ter que ficar fechada, ninguém falava nela, e quando um dia abriu, parecia um túmulo frio e escuro, muito escuro, cheiinho de vidros de remédio vazios de vários tamanhos, por quê? E a boneca que fez amarrando roupas velhas, só pra não passar por mentirosa pra umas meninas ricas que haviam chegado de visita. Elas riram muito quando apresentou a tal boneca, mas ela nem ligou, disse que tinha e tinha...ficou feliz de ter resolvido a situação, também a mãe tinha a mania de guardar a boneca em cima do guarda-roupa... As tais meninas eram muito bobas e ficavam só discutindo sobre quem tinha mais coisas, a melhor casa, e ela bem menor não entendia a importância daquilo , achava que sua casa tinha tudo, e tinha mesmo, não entendia o valor de geladeiras,banheiros, objetos, e muito menos o porquê daquelas disputas. Agora inda agorinha, passou aquela moça do rabo de cavalo, na sua nova bicicleta... E olhando pra si mesma, magricela, espigada, que a prima mocinha falou que era a miss Brasil de perna fina, e que a outra menina era linda , olhava e não entendia como a moça da cidade andava pisando com a ponta dos pés, usando aquelas sapatilhas de boneca, que fazia o seu andar balançar... era tão bonita, loira, longos cabelos, enquanto ela era uma menina espigada com cabelos desarrumados e uma horrível franja cortada pela mãe. E teve tantas mães, às vezes sonha com uma, de cabelos até os ombros, escuros, uma moça bonita, um pouco distante, que um dia lhe fez um doce de clara batida só pra ela e quase a pôs no colo. Mas que lhe deu tanto, tanto, está repleta de suas mãos, seus olhos, seu cheiro, ainda sente o cheiro da sua pele branca, limpa, ah os cheiros da vida, o cheiro das folhas amassadas nas mãos, das flores... e lá no meio da bruma do tempo, no estradão, as longas pernas da "Brasil", tão séria, queria ser cantora, acreditou, Brasillllllll.....

 

             Taquara do Mundo Novo,
                
                 onze de maio de 2008.
tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 12/05/2008
Reeditado em 13/08/2011
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