BRINCANDO DE POETAR

Heloísa Pinto de Freitas Gradi

Eunápio Amorim

João Justiniano da Fonseca

(Publicado na revista da Casa do Poeta Brasileiro em Salvador, n. 3, 2001)

O Dr. Eunápio Amorim, advogado no foro de Salvador, colega na mocidade – auditor fiscal da Receita Federal - chega a este pobre trovador com o seguinte bilhete:

Caro Fonseca,

A MM Juíza da 6ª Vara de Família achou por bem deferir-me sentença, fazendo-a rimada em duas vintenas de quadras, aliás, respeitando a devida fórmula processual. Resolvi assumir a "provocação", promovendo a execução dessa sentença mediante petitório rimado, como verá nessas cópias, que, "concessa venia", ofereço-lhe à sua apreciação de louvado poeta e romancista, como simples curiosidade de literatice judiciária...

Do fraternal amigo e admirador,

Eunápio Amorim.

Porque essa dita “literatice”, de tão nobre e agradável tocou-me a alma, acabei compondo um poema de homenagem à juíza e ao advogado. Literatice, eu diria a quem timidamente apresenta o trabalho, é a pretensão à literatura quando o autor não tem méritos. A sentença e o arrazoado, que vão a seguir transcritos, ao lado de fazerem transparente o espírito dos autores e cristalina sua sensibilidade de poetas, põem no escrito o coração, e, sendo documentos de uso interno, sem intuito à divulgação, não têm pretensão nenhuma. Têm beleza, força de expressão, vida. São, no meu modesto entender, literatura no seu sentido mais perfeito - composição artística de trabalho escrito. E se jurídica é esta, como a define o Eunápio, jurídica seja e bem haja quem a compõe. Não importa a marca do principiante nos eventuais senões que nem sei se os próprios mestres deixam de cometer. E eu, pobre de mim, os cometo tanto e tantos. Importa reconhecer-lhe um mérito de extraordinário valor humano: a confirmação de que no mais difícil labor do homem, o de fazer e oferecer justiça, o coração pode estar presente sem quebra da verdade sentenciosa, sem fuga à lei, sem desvio do direito. Creio que se alguma coisa conforta a sociedade, não a confortará mais do que ver que a Justiça conta a alma sem deixar de aferir a balança. Com efeito, a integridade do juiz e do defensor da lei, é a segurança maior de um povo. E o fato de saber-se que estes têm a balança em uma das mãos enquanto levam a outra ao coração na hora de decidir ou arrazoar, é uma razão de conforto moral e espiritual. A Justiça é uma religião e seus sacerdotes não poderiam ter a secura do granito, antes, devem possuir a doçura do mel.

Foi por esse lado que entendi o poema da meritíssima doutora Heloísa Pinto de Freitas Vieira Graddi, Juíza de Direito com exercício na 6ª Vara de Família, diante do requerimento exibindo, no consensual, a convencida queda de um casamento de dois anos ou pouco mais. Deus do céu, e há quantos assim! Milhares! Como a cultura moderna se convence tão facilmente da liberdade absoluta na relação dos casais! Tempos virão, eu não os alcançarei, mas os meus netos sim, talvez os meus filhos, em que hão de solver-se os laços de família e logo mais as pessoas acabarão não sabendo de pai, só de mãe solteira... E porque, perdido esse vínculo reduzem-se os braços da economia doméstica, o problema social do menor carente ou abandonado por certo se multiplicará como multiplicam-se os filhos de Adão. Já não basta a promiscuidade atual das camadas de baixo nível intelectual e escassa renda familiar ou sem renda nenhuma criando tantos meninos de rua, e as classes mais favorecidas, a média sobretudo, ainda querem mais.

A SENTENÇA

VISTOS, ETC...

Neste Juízo os autores

Entraram com a presente ação.

E, o pedido formularam

Pretendendo a separação.

Às fls. 02 os Autores

Já estão qualificados.

E juntaram os documentos

Ao pedido formulado.

Pleiteiam os requerentes

Através desta ação,

Que se homologue por sentença

A sua separação.

Na audiência de ratificação

Que este Juízo realizou

Foi confirmada a pretensão

Que o casal ajuizou.

Se já não existe amor

E, afinidade entre o casal

Podem pedir em Juízo

A separação Consensual.

Relatados estes autos

Passo agora à decisão.

Para ver se tem procedência

Esta ação de separação.

Os requerentes já estão

Há mais de dois anos casados.

E, ajuizaram esta ação,

para se verem separados.

Requer a legislação em vigor

Para que se decrete a separação

Que os requerentes estejam casados,

E, mais de dois anos, a união.

Pronunciou-se o Dr. Curador

Em sua douta promoção.

Com as razões que aduziu

Pela procedência da ação

Por todos os fundamentos

Que justificam o pedido,

O mesmo tem cabimento

E deve ser deferido.

Encontra respaldo legal

A pretensão dos requerentes

Por esta razão é que JULGO

Seu pedido PROCEDENTE.

HOMOLO assim todos os termos

Constantes da inicial,

Porque verificou-se o consenso

Havido entre o casal.

Também o nome de solteira

A requerente desta ação,

Deverá voltar a usar

Pois esta é, sua pretensão.

Estão os requerentes, pois,

Legalmente separados.

E por força deste decisum

Definitivamente desvinculados.

No termo do casamento

Dos autores desta ação,

Para que se faça constar

A sua separação.

Cumpridas com precisão

As legais formalidades,

Dê-se baixa na distribuição,

E, arquivem-se com brevidade.

Publicada e Registrada

Para a devida ciência

Sejam as partes intimadas

Do teor desta sentença.

No mês de fevereiro deste ano

Aos 16 dias transcorridos

Nesta sala de audiências

O pedido foi deferido.

Como titular daqui

Nesta Vara eu sou Juíza

Pinto de Freitas Vieira Graddi

O meu nome é Heloísa.

(assinatura)

HELOÍSA PINTO DE FREITAS GRADDI

Juíza de Direito.

O PETITÓRIO

Deu-se que o primeiro requerente, ex-cabeça do casal, tendo assumido o compromisso de pensão familiar, não o cumpriu. Daí, a segunda requerente, ex-esposa, voltou a Juízo pleiteando o cumprimento da SENTENÇA. E o advogado, assumindo como diz, a "provocação", uma vez que a sentença se dera em versos, em versos requereu. Vai o poema-requerimento:

............................. separada,

tendo de V. Excelência

a sentença já publicada,

em AÇÃO DE SEPARAÇÃO

espécie CONSENSUAL,

que neste Juízo move,

de registro numeral

332.4929,

por seu comum advogado,

que vai abaixo assinado,

vem formular petitório,

conforme infra-alinhado,

deixado entregue ao Cartório,

em versos de "pé quebrado".

PRELIMINARMENTE, em havendo

SEPARAÇÃO CONSENSUAL,

dispensa pede, encarecendo,

do decênio recursal.

- O dito cônjuge varão,

acima mencionado,

da alimentar prestação

jamais cumpriu o acordado

(cláusula "G" a inscrição)

no acordo homologado.

- Nos termos da condição,

por "cláusula" aqui declinada,

seu separado marido

deve por obrigação

ter de seu ganho descontada

pactuada fração,

conforme foi decidido,

na mensal ocasião

do salário recebido;

do bruto, como convém:

para a filha, vinte sendo,

apenas dez lhe cabendo,

da fração total se tem.

- Como oportuna menção,

informa ser seu marido

bancário de profissão,

como tal reconhecido,

por ter carteira assinada

no BANCO ECONÔMICO S.A.,

em cuja AGÊNCIA - CALÇADA

tempo integral ele dá.

- Assim, por todo o exposto,

para sua subsistência,

requer a V. Excelência

àquele Banco seja imposto

o desconto contratado,

para ser depositado,

dia cinco, o mais tardado,

em conta da suplicante,

na Agência ao pé referida,

a fim de que sua vida

tenha menor sofrimento.

- Nestes termos, postulando,

na JUSTIÇA confiando,

espera deferimento.

Salvador, 12 de março de 1993

(assinado)

Eunápio Amorim.

A AURORA E O ENTARDECER

Eunápio Amorim, amigo,

o mesmo amigo que eras

nas vinte e seis primaveras,

à sombra do mesmo abrigo...

Quanta distância vem vindo

desse tempo fazendário,

trabalho lento de erário,

esforço e brilho luzindo...

O brilho dos vinte e seis

tem raios de fogo e amor,

tem força de sobrepor

poder de magos e reis!

Pois foi ai, Deus de graça,

que eu conheci quanto amigo

que passo em passo, comigo,

ocupou o chão da praça!

E quanto de luta e sonho

de ideal, vontade forte,

veio nos matando a morte

no seu dissídio medonho...

Passou o nosso Walmir,

líder e mestre, paládio,

foram-se o Verne, o Aládio

e Osvaldo Teles, o Emir.,

Foi o Péricles Viana

ainda em plena efervescência

da madura experiência,

oh, a vida!, como engana!

Estamos poucos inteiros,

Deus louvado, vida lenta,

no caminho dos setenta,

como nos tempos primeiros...

Eu, você, o Perdigão,

Pimenta e Valter, não mais,

daquela turma capaz

de firmar os pés no chão.

E porque o sonho é o meu dom,

penso alcançar os oitenta,

e espero que a gente aguenta,

viver é bom, muito do bom!

Tudo isso me ocorre agora,

à vista de uma aquarela

que marca simples, na tela

o entardecer e uma aurora.

Refiro-me à prolatada

sentença de uma juíza,

que sendo firme e concisa

vem em suave balada.

E me refiro ao jurídico

- a mim, como é bom saber! -

poema de requerer,

que compõe o meu causídico.

Você guardou o segredo

por tantos anos meu caro,

sem que eu nem sentisse o faro

da existência desse aedo...

Nem podia imaginar

uma penada em sentença

marcando a mansa presença

da trova no prolatar.

E ainda mais, me parece

que a julgadora é a aurora,

é a mocidade, é o agora,

é a rosa compondo a prece...

Que luxo para a poética

compor-se num bom julgado

e num justo arrazoado,

ambos em perfeita métrica!

Meu amigo exegeta,

a aurora e o entardecer,

vêm os dois a merecer

o meu louvor de poeta.

Eu, de mim, me emociono

ao sentir tanta beleza,

nos rigores, na aspereza,

nos escondidos do trono...

A lei tem sempre um mistério,

um confuso, um intrincado

para ser interpretado

ante o bom e o deletério.

E eis que a nossa magistrada

cujo nome é Heloísa,

foi muito firme e precisa,

na expressão bem trabalhada...

Por que prolatou em versos,

o julgado do consenso,

não sei direito, mas penso

em emoções e reversos.

Poeta, peço licença,

a juíza e advogado,

para ver no homologado,

do coração a presença.

Com efeito, em só dois anos,

este casal se dilui...

É certo que isso influi

nossos íntimos arcanos.

Desculpem, sem ilações,

o rogo consensual

deste simplório casal,

mata as nossas ilusões...

E é disso aí, que eu presumo

ter a jovem Heloísa

- perdão, doutora juíza -

atingido o supra-sumo.

Foi simples pois: HOMOLOGO.

Mandou que se publicasse,

desse ciência e arquivasse,

e bem que pensou, fez logo.

É porém, que o dito cujo,

ex-cabeça do casal,

fugiu ao consensual

na hora do caramujo.

Dinheiro escapole, é fogo!,

este quis negar o cheque

e para lhe dar um breque,

vai ao Fórum novo rogo.

Agora quer, sob vara,

no petitório o Eunápio,

que se compila o larápio

a abrir sua mão avara.

E vem em poesia régia,

a razão fundamentada,

que depois de ajuizada,

tem retorno à pena egrégia.

Então a doutora é assente:

como requer, oficie-se

para que o réu avie-se,

pague em moeda corrente.

Afinal, tudo isso dado,

porque estimo a inteligência,

o brilho, a honra, a decência,

eu me sinto estimulado

a formular um convite

à juíza da Sexta Vara

que numa penada ampara

a poética e o desquite.

E reafirmo o permanente

ao ilustre advogado

que tenho por consagrado

no verso, mui justamente.

Dignem-se a vir conhecer

a UBT de Salvador

e aqui, conosco compor

a trova do bem-querer.

Uma só ressalva exata:

sendo o sábado primeiro

do mês, cabe-lhes, inteiro,

marcar a precisa data.

Em dia certo e marcado

renderemos a homenagem

a quem integra a mensagem

de amor ao lar no julgado.

É bom que fique o registro:

o poema foi composto

aos vinte e um dias de agosto,

nove-três da Era de Cristo.

Eu, João Justiniano

no endereço que aparece

à Rua Emílio Odebrecht,

três-dois-meia, sem engano.

É na Pituba, o edifício

chama-se Praia Dourada,

manhã cedo, madrugada,

estou firme em meu ofício.

Quem quiser o telefone

ligue dois e quatro e zero,

dois, um, meia, dois, espero

que ao ligar me encontre insone.