[Ela, o Porto e Eu]
Nunca se deslindará a tensão entre a Poesia e a Pintura — esta é uma razão suficiente para repetir a leitura deste poema! Como entender a trama sutil de significados que uma e outra engendram na mente do expectador? O homem é um criador de signos; e todos os objetos que nos rodeiam são signos — é o que nos diz Sartre. Decifrá-los... eis a questão!
O poema "Ela, o Porto e Eu" foi desentranhado de um quadro que vi numa exposição de arte realizada por um grupo de pintores. Por certo, não pintei com palavras a profusão de significados que o quadro desencadeou em meu cérebro tão logo o vi — e não sei dizer por que a mera contemplação da imagem da mulher sentada sobre as malas, de costas para o expectador, fez com o poema tomasse o rumo que tomou. Lembro-me que tomei notas rápidas ainda durante a exposição, e fui para casa com idéias pululando... Depois, retornei à exposição, contemplei o quadro por longo tempo — só então escrevi.
Tentei conversar com o pintor, falar-lhe da ansiedade que o seu trabalho me causou, mas logo confirmei uma impressão que tenho dos pintores: eles não falam sobre os seus temas, suas razões permanecem misteriosas — eles pintam, não escrevem; eu falo e escrevo, não pinto! Há um poema pintado sem palavras e há um poema escrito sem imagens — disto, eu não duvido! Decifrar os signos que nos rodeiam — é o que nós, em nossa empreitada de Sísifo, tentamos, infrutiferamente, vida afora!
[Ela, o Porto e Eu]
[Nunca se deslindará a tensão entre a Poesia e a Pintura]
O sol da tarde amortece seus últimos raios
sobre a vida agitada do cais...
No tablado à beira d’água infinita,
de costas para mim, lá está ela,
languidamente sentada sobre uma de suas malas,
com o pé esquerdo apoiado sobre a mala menor.
Quase estática na paisagem, ela olha o horizonte,
e é toda espera [vê-se que anseia].
Olho-a...
E sinto a brisa suave lamber meu rosto
que — eu nunca me vejo! — deve estar embevecido
na muda contemplação desta bela mulher.
[Eu não vi o seu rosto, mas sei que é bela].
De seu corpo longilíneo, esvoaça uma echarpe branca,
feito asas que levam minha imaginação.
seu chapéu oculta-lhe o rosto,
mas seu corpo conta-me de sua mirada.
Para meu espanto, no cais há:
aquelas malas;
o barco;
a distância;
o vento;
ela, com sua levíssima echarpe branca;
e eu.
Nela, e também em mim — lateja a ansiedade!
Mas sei que ela partirá de sua espera,
e eu ficarei nos molejos da minha!
Mas agora, por um breve instante,
nada muda esta cena que me traspassa:
no porto, estamos ela... e eu,
que estou a ponto de adentrar essa tela!
[Penas do Desterro, 30 de novembro de 1998]
caderno 2