UM CONVERSÊ COM OÍDA, QUE, APÓS PERDER A PAIXÃO POR MIM, SE ESCAFEDEU PARA O SUL DO CANADÁ SEM MESMO SABER SE EU RESPONDERIA À SUA CARTA, POSTADA TRINTA ANOS DEPOIS

uma carta de linhas tortas

[fria]

esconde um sol inteiro que há por dentro, morador de ti

[o Jorge Ben, agora, é Jorge Bem Jor]

um tratado de inverno

vindo – acho – do sul do Canadá

por que foste para lá

exatamente quando as novelas de tevê resolveram abalar Portugal?...

dizes ter dois filhos,

que casaste há muito e muito,

que fizeste até as pazes com a imigração!...

[glacial!]

descreves as reuniões tidas aí

como uma madrasta encomenda bolos de aniversário;

no fundo das fotos, há uma janela sempre cheia de céus acinzentados

[Zico foi campeão, sem mesmo ter ido à Seleção]

imagino que as tuas coxas não estejam suficientemente quentes

[nem suficientemente bronzeadas]

como quando,

mesmo fazendo com que todos pensassem que criavas piolhos nos cabelos,

passeavas pelas Dunas da Gal

[Nelson foi visitar Clessi. Deixou “A Serpente”]

dizes bem aqui,

no final,

que teu marido anda a sofrer duma úlcera gástrica incorrigível,

[estresse alto]

e – por mais que tentes convencê-lo – ele quer-se distante do Brasil.

[nem Paulo Pontes nem Vianinha resistiram]

quero só mais um abraço,

um abraço a menos é pouco, quando em qualquer reta final

te mando um beijo daqui

[escutado?]

tu bem sabes que cheiro a tudo bem escrito e construído na pátria.

[suficientemente feliz, estou, no quarto casamento]

sabe, jamais pararei

[aí ou cá]

escuta,

se, por acaso, vieres a se cansar daí do sul do Canadá,

escreve outra carta não assim,

mas sim,

com a mesma leveza dos teus cabelos longos, suavemente esvoaçados

[cortaste-os?]

um cheiro e um beijo bem brasileiro, amiga;

por enquanto, basta?...