O Fio da Lâmina
“Não há amor que não carregue
o veneno da sua própria negação
nem ódio que não sangre
o nome de um deus caído.”
Amor e ódio são irmãos siameses na veia —
um beija a ferida que o outro abriu no peito.
Ele: a tempestade que desenha o contorno da alma.
Ela: o gelo que queima mais que o verão.
Nascemos da mesma cicatriz, diz o espelho partido:
o ódio é o amor que não suportou ser esquecido.
Ele a chama de vício, ela o invoca como altar,
e no meio, o abraço que não sabe se é punhal.
Há dias em que o ódio veste a máscara do amor,
oferece rosas de aço, envenena o pão que dá.
E o amor, traído, cospe fogo pelo rio abaixo —
mas no fundo do poço, ainda canta sua canção.
Amar é arrancar lascas do próprio osso
para esculpir no outro um rosto que já foi seu.
Odiar é reconhecer, no espelho do inimigo,
o mesmo sangue que nega e clama por perdão.
Na cama da guerra, dormem de mãos dadas:
ele a odeia por saber que um dia a amou demais;
ela o ama por não suportar que ele exista
sem ser a cratera que restou de seu furacão.
À meia-noite, quando os deuses viram a página,
ódio e amor dançam no mesmo salão de estorvo —
um sussurra promessas que o outro desfez,
e no vazio da ausência, inventam nova língua.
No fim, só restará o fio que os une e separa:
o amor que foi ódio, o ódio que ainda é amor.
Dois rios num mesmo leito, secos e transbordantes,
lavando na garganta do mundo a mesma dor.
Pois só quem sangrou nos dois lados da lâmina
sabe que amor e ódio são a mesma chama —
a que incendeia o céu, a que consome a carne,
e na cinza do fim, assina seu pacto eterno, da alma.