Fluvialidades
Um dia virei rio, e corri pelo leito do riacho que tanto admirava, revolvia meu fundo, esbarrava nas barrancas com suavidade e uma ponta de malicia. Nas curvas me estreitava para poder passar sem estragar as margens, em puro respeito a mãe, nas retas tentava aumentar minha velocidade, mas não conseguia. Vibrava ao sentir as pontas das folhas resvalando sobre minha superfície, em toques sutis e excitantes. Levava galhos por quilômetros a fio, só por pura diversão, minha e dos galhos. As folhas que em mim caíam eram como barcos, elas se esmerando para não virar, e eu tentando derrocá-las. Às vezes sentia a língua de algum bicho sedento em minhas margens, e me sentia feliz por prove-lo. Ora me sentia ser rasgado por peixes velozes, se divertindo e se fartando em meu meio. Tinha pequenas praias em que alevinos se refugiavam e nas brincadeiras de peixes meninos se distraiam e eram comidos por pássaros ou peixes maiores. Mas o que eu gostava mesmo era das pequenas corredeiras, onde meu leito era cravejado de pedras, e eu me debatia docemente contra elas e formavam-se milhões de bolhas, e eu gargalhava produzindo um barulho inebriante, e as pedras riam as favas.
Como foi bom ser um rio, que nasceu de um fiapo de água e lentamente foi se transformando, crescendo, vivendo em mutação, e transformando todas as vidas que encontra, em vidas alegres e melhores. Neste caminho de rio que tracei, cheguei à foz e vi o mar, enlouqueci diante da visão de tantas águas irmãs juntas, juntando-se para formar outra estória, e então alucinado um dia virei mar...