Assoreamento
Falai, ó águas que um dia corriam livres!
Que mão vil vos lançou ao sono eterno?
Quem vos envenenou com pó e esquecimento,
vestindo-vos de sombras, sufocando-vos em lodo?
Fostes outrora um espelho dos céus,
um fio de prata que cortava vales,
um coração pulsante, levando vida ao ventre da terra.
Mas vede agora vossa sina:
um leito turvo, um túmulo sem mármore,
onde as marés já não respiram,
onde as veias do mundo secam em silêncio.
Ó bosque antigo, onde jazem vossas raízes?
Onde estão os braços que abraçavam as margens,
os dedos verdes que afagavam as águas,
que escutavam os sussurros do vento?
Rasgaram vossa pele, deixaram-vos nu,
e sobre vossa carne desprotegida
a tempestade verteu seu aço cortante.
Primeiro veio a areia, fina e traiçoeira,
dançando leve como um segredo ao vento.
Depois, veio a pedra, pesada como um crime oculto.
E por fim, a lama — densa, amarga,
serpente negra que vos invade,
afogando-vos, sufocando-vos,
roubando vossa voz.
Os peixes que em vós dançavam
agora são espectros afogados,
perambulando em charcos de luto,
procurando profundidade onde só há morte.
E vós, ó leito de outrora, que fostes um cântico,
agora sois um sussurro cansado,
um corpo sem alma,
um nome gravado na poeira da memória.
Oh, maldição da terra!
Se a água fenece, que será do mundo?
Se o rio se desfaz, que será da vida?
Se o último fio de prata for tragado pelo esquecimento,
que restará além do pó?
E quando o homem despertar de sua embriaguez,
quando buscar sede onde não há fonte,
quando clamar por clemência a leitos vazios,
então o rio — este rio que um dia o sustentou —
responderá com o silêncio de sua própria morte.