A fome do mundo ::

O chão range. O sol afia os dentes

nas vidraças trincadas do tempo.

Há um nome que escorre pelas paredes,

mas ninguém sabe dizê-lo sem queimar a língua.

A cidade late dentro da pele,

um cão de fogo farejando as veias,

e cada rua abre-se em fendas,

sangra luz e se fecha em cinza.

Fomos crianças um dia —

pés descalços mordendo o asfalto quente,

olhos cuspindo a febre da tarde,

corpos que não sabiam a queda,

mas a queda já nos sabia.

A noite é um espelho partido,

mil rostos nos olham do outro lado,

rostos que fomos,

rostos que nunca seremos.

As casas nos engolem com suas bocas de sombra,

os corredores estalam ossos invisíveis.

A memória lateja, mastiga-se,

vira um bicho maior que o corpo.

O tempo não passa, ele ruge,

ele devora suas próprias entranhas.

A infância ainda queima sob os escombros,

um fósforo riscando o ventre do escuro.

E o mundo, esse grande animal faminto,

nos mastiga, nos cospe,

nos engole de novo.