Os pingos
Há quem diga que a poesia é um presente
proveniente dos céus e além; os que me conhecem
(você me conhece)
entendem que o misticismo me discorda.
Todo inocente que surgiu em minha vida, meses depois,
retirou-se suspirante e cabisbaixo,
com a cabeça balançando em negação e, em mãos,
duas lentes cor-de-rosa craqueladas.
Eu só pairo esta disforme criatura — é óbvio,
e empunho torpe caneta ácida,
que lesa o contorno e mancha.
Se não fosse isso, um antropofagismo,
eu não seria o autor da façanha…
A eloquência me contempla revoltado;
quando calmo, passa de rosto virado,
tornando-me estranho: a cada ser humano
cabe sua própria terapia.
O personagem que emulo sangra em demasia,
o que edifica a integridade do sossego — ou seja,
a fraqueza admitida fortalece.
Eu evito estufar o peito, exacerbando conquistas;
desvio a vista da prosa masturbatória,
cujo intento é projetar autoestima; acredito piamente
que a beleza é mais bela à surdina: há horas
em que meu próprio otimismo me choca e, contudo,
o sentimento não inspira.
Eu dedico este alter ego à minha dor.
Faz sentido que jamais abri mão.
Se curassem toda angústia, tão cedo exporiam
uma mente que a paz estancou — fique, mesmo,
farta das migalhas que lhe deixo,
mas não confunda o que eu escrevo com quem sou.
Por menos que insista, herdei a alma do artista
que precisa sofrer para compor.
E sofro mecânico, na bamba ponte
entre a franqueza e o estilo intencionado;
em meio a tantas facilidades possíveis
fui parcial aos piores caminhos
(você é o pior dos caminhos)
pedi que me atassem as mãos
e então vendassem meus olhos — os três.
Igual aquilo que não se expressa
sob a fineza de uma verborreia,
da sua ruindade que este verso floresceu;
por isso rimo em aspecto sujo, sem métrica alguma
como o espectro a tremer o lampadário
— e será sempre assim, sim. Sinta-se livre para sair.
A porta nunca esteve trancada.
Sei que às vezes canso, mas, se tenho o megafone
por que não choraria minhas mágoas?