TRÉGUA
Vai, memória, com tuas pobres asas roídas,
Empreende o voo raso
Com a ponta dos dedos
roçando a areia de algum tempo findo
sentindo o frio das horas ceifadas
A riscar o rosto murcho
Onde outrora o sorriso foi céu de estrelas
Hoje apertas nas mãos a esperança frágil
Criança doente que a febre devora
Vai, memória, embora
Enquanto há luz lá fora e podes ver os caminhos
Deixa me aqui sozinho nesta casa enorme de paredes nuas
Sem espelhos, sem desenhos, sem miragens
Deixa me errar em cômodos vazios
Com passos lentos, descompassados
De costas para a rua, ouço te bater a porta
E fugir, tomar impulso e bramir contente
O estandarte da partida
Vai-te de mim sem despedida
Na sombra das pálpebras cerradas
No rio de lágrimas vertidas
Como quem nada sente, e ri-se de tudo,
Como se fosse eu o absurdo
E tu, a ventura perdida.