Na mesma tigela
Primeiro, ama o adormecer,
o mergulho na sombra líquida,
e depois, o acordar, a luz que se derrama
como um rio de ouro sobre o corpo,
o campo e o orvalho, o segredo
da noite que se dissolve, o céu
que se entrelaça com o mar
- instante escorrendo á eternidade -
As nuvens, movendo-se ao sabor do vento,
- pensamentos que flutuam -
o sol, um deus de pantufas flamejantes,
que a tudo inunda, o animal que late,
a ave que desliza, um corte no ar,
a panela no fogo, alquimia do almoço.
Aqueles que foram,
na jornada, sombras que persistem,
e aqueles que, bússolas e conforto,
foram a certeza de não estar só.
Ama a tarde que segue a manhã,
segura a mão da noite, misteriosa,
com suas estrelas, mais que escuridão,
o cosmo, grávido de si mesmo,
ciente da queda e do perdão.
O ar que preenche os minutos,
a boca que beija, a língua que ama,
o corpo, porto seguro. Ama as ruas,
as crianças que um dia conheceste,
o ancião que serás, o jovem enganado,
o adulto que, desenganado, não refuta o essencial.
A vida e a morte, o abraço das duas,
a gratidão que ofereces a cada pensamento,
sentimentos que tomam forma,
trazendo o distante para perto,
o aluvião que nos transforma,
o tempo que roda roda roda...
Ama o fogo, a madeira, a brasa, a cinza que resta,
a porta que se abre e fecha,
que se abrirá após a paciência, ama a ti mesmo,
com teu gesto infantil, tuas agonias,
a hora perdida e esta hora
onde vês mais, para fora do corpo,
do que ontem. Os vales, montanhas de outra forma,
ama, apenas ama a ternura,
sombra inseparável: a textura eloquente da amargura,
a doçura alegre que, ainda que breve, a vida oferece.
O doce e o amargo, entrelaçados - juntos -
bem servidos, na mesma tigela.