Receita de Mulher                   

 

 

 

 

Receita de mulher

Vinícius de Moraes

Rio de Janeiro , 1959

 

As muito feias que me perdoem 

Mas beleza é fundamental. É preciso 

Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso 

Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture 

Em tudo isso (ou então 

Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa). 

Não há meio-termo possível. É preciso 

Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito 

Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto 

Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. 

É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche 

No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso 

Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas 

Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços 

Alguma coisa além da carne: que se os toque 

Como o âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos 

Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro 

Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e 

Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem 

Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então 

Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca 

Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência. 

É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos 

Despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicas 

No enlaçar de uma cintura semovente. 

Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras 

É como um rio sem pontes. Indispensável 

Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida 

A mulher se alteia em cálice, e que seus seios 

Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca 

E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas. 

Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebal 

Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! 

Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas 

E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem 

No entanto sensível à carícia em sentido contrário. 

É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio 

Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!) 

Preferíveis sem dúvida os pescoços longos 

De forma que a cabeça dê por vezes a impressão 

De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre 

Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos 

Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face 

Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior 

A 37º centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras 

Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes 

E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e 

Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão 

Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta 

Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. 

Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se se fechar os olhos 

Ao abri-los ela não mais estará presente 

Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá 

E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber 

O fel da dúvida. Oh, sobretudo 

Que ela não perca nunca, não importa em que mundo 

Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade 

De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma 

Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre 

O impossível perfume; e destile sempre 

O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto 

Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina 

Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição 

Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

 

 

 

Poema "Receita de Mulher", de autoria do Poeta carioca Vinícius de Moraes, conhecido como o "Poetinha", já, infelizmente, falecido.