O Lamento das Sombras

 

À minha volta, a casa imunda,

É reflexo de uma alma funda.

Paredes negras, sujas, rotas,

Como o coração, que já nem brota.

 

O chão é lama, sangue e pó,

De erros feitos, que eu sou só.

E a janela, de vidro quebrado,

Mostra o mundo, triste e errado.

 

Por entre os cômodos, apodrece

O ar pesado que em mim cresce.

E o fedor do meu pensar,

Faz-se vivo, a me esmagar.

 

Assim é a alma, assim é o lar,

Um labirinto a sufocar.

Janela range, o vento chama,

E os seres vêm, na noite insana.

 

À porta escura, o vento uiva,

Trazendo sombras, negras, cruas,

E ao som do chão, batendo forte,

Tremi ao vislumbrar a morte.

 

Eis que surge um ser macabro,

De gorro rubro e riso vago,

É o Saci, dono do caminho,

Senhor do nosso "jeitinho".

 

O saci, rindo com desdém,

Cuspindo a sombra que me tem.

Riso amarelo, falso e esguio

Cospe no chão podre e frio

 

"Engano e farsa são teus dons",

Ele sussurra, sem porquês,

"Tu faz de tudo, trapaceiro,

Roubando a alma do estrangeiro."

 

E mais além, um grito ecoa,

Do Curupira, cujo açoite soa.

“Protejo as matas, mas em vão,

Pois há em mim vil tentação.”

 

E seus pés virados, confundem mais,

Mas quando a face é vil, carente,

Na dúvida entre o bem e o mal,

Até o justo vira serpente.

 

Então, das águas ao longe, a Iara,

Bela e fria, mesquinha e rara.

"Canto de luz, canto em vaidade,

E aos mortais trago saudade."

 

Ela sorri, e tudo afunda,

Os olhos cegos pela espuma.

"Mereço mais, pois sou mais bela,

E em vaidade, sou centelha."

 

O Boto emerge em riso falso,

De seu encanto, vergonha faço.

“Seduzo almas, tomo vidas,

Sou teu desejo que faz feridas.”

 

Ele conquista, esconde o olhar,

Seu dom é farsa, é só roubar.

"Nas noites quentes, sou tentação,

E faço em ti a perdição."

 

O fogo então lambe o caminho,

Boitatá, feroz vizinho,

"Queimo o campo, queimo o ar,

Dentro de ti, sou teu pesar."

 

Ele é a chama que devora,

A luz que mente, a paz que chora.

"Queimar o mundo é teu destino,

Queimar-te a ti, desde menino."

 

E no final, ao ecoar,

Tudo retorna ao meu pensar:

O pior em nós não é a fera,

Mas o pensar que desespera.

 

Ser irracional seria alívio,

Longe das sombras do juízo.

Pois o que somos, todos sabem,

São monstros presos, que não cabem.

 

O Saci ri, o fogo brilha,

A Iara canta, a alma trilha.

E o Curupira, triste, jaz,

Pois até o justo ruína faz.

 

O Boto, rindo, espreita além,

Em cada amor que morre em vão.

A cada ser, um mal que habita,

Fogo-fátuo, clemência infinita,

 

E enquanto a noite engole o ser,

Eu ouço a voz do mal a erguer:

"O que tu pensas é teu fim,

Pois só o mal existe em mim."

 

“O fim não está em outro alguém,

Mas em ti, que te envenena o bem.

Carregas dentro o que não vês,

Os monstros dançam por teus pés.”

 

Gula, ganância, ira e orgulho,

Em inveja, soberba, luxúria mergulho.

E a voz ressoa, firme, imensa,

Trazendo à luz uma sentença:

 

"O inferno que tanto imaginas,

É tua alma, é tua sina.

A fera em ti já não descansa,

Não há salvação, nem esperança."

Ferrachi Abdtzen
Enviado por Ferrachi Abdtzen em 06/09/2024
Código do texto: T8145513
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