CEMITÉRIO VIVO DAS COISAS MORTAS

Sou a soma daquilo que perdi

e trago em mim este amontoado de ausências

Em minha alma há mais silêncios

do que a calada mudez do universo

Ao nascer perdi o útero

mas ganhei o peito materno

Ao crescer perdi o peito

mas ganhei a autonomia dos meus passos

No afastar do colo da minha mãe

ganhei o mundo e um punhado de calos

Para cada ciclo vivido

vou levando minhas perdas

E para chegar lá...

perdi o que tinha

...no lado de cá

Não há ganhos sem perdas

E o que seria das minhas tantas perdas

não fosse esta porção de certos ganhos?

É perdendo que me recordo

e é me recordando que construo

os tijolos da minha história

Há perdas saudáveis

Há perdas dolorosas

Existem perdas esperadas

perdas necessárias

perdas repentinas

perdas precoces

perdas tardias

e perdas adiadas

A vida é toda feita de perdas

pois sem perdas não teria a vida

Perdi o útero

larguei o seio e o colo

Perdi a infância

e o rapaz me deixou

Sumiu a juventude

desapareceu o primeiro amor

Deixei o colégio

e o sonho de ser cantor

E lá se foram

meu cavalo de aço

minha calça boca sino

e meus longos cabelos encaracolados

Se não fossem alguns retratos

teria apenas as paredes esburacadas das lembranças

E já que sou toda a soma de tudo o que perdi

então minha memória é um cemitério vivo

assombrado pelos fantasmas das coisas mortas

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 15/07/2024
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