CEMITÉRIO VIVO DAS COISAS MORTAS
Sou a soma daquilo que perdi
e trago em mim este amontoado de ausências
Em minha alma há mais silêncios
do que a calada mudez do universo
Ao nascer perdi o útero
mas ganhei o peito materno
Ao crescer perdi o peito
mas ganhei a autonomia dos meus passos
No afastar do colo da minha mãe
ganhei o mundo e um punhado de calos
Para cada ciclo vivido
vou levando minhas perdas
E para chegar lá...
perdi o que tinha
...no lado de cá
Não há ganhos sem perdas
E o que seria das minhas tantas perdas
não fosse esta porção de certos ganhos?
É perdendo que me recordo
e é me recordando que construo
os tijolos da minha história
Há perdas saudáveis
Há perdas dolorosas
Existem perdas esperadas
perdas necessárias
perdas repentinas
perdas precoces
perdas tardias
e perdas adiadas
A vida é toda feita de perdas
pois sem perdas não teria a vida
Perdi o útero
larguei o seio e o colo
Perdi a infância
e o rapaz me deixou
Sumiu a juventude
desapareceu o primeiro amor
Deixei o colégio
e o sonho de ser cantor
E lá se foram
meu cavalo de aço
minha calça boca sino
e meus longos cabelos encaracolados
Se não fossem alguns retratos
teria apenas as paredes esburacadas das lembranças
E já que sou toda a soma de tudo o que perdi
então minha memória é um cemitério vivo
assombrado pelos fantasmas das coisas mortas