Pó de labareda
O silêncio do amanhã
E se amanhã o silêncio bater à minha porta? Calado hei de ficar. Que mais se pode fazer quando a mudez última se projeta no cessar definitivo da chama dos desejos? Arrependimentos, como de praxe, haverá muitos: ser o que não fui, estar onde não estive, fazer o que não fiz. Mas nada disso terá importância real se o meu destino for o amordaçamento. Então, se amanhã o silêncio me abordar, como tentativa póstuma de reflexão rediviva, escrevo os versos nesta folha, para que, por ventura, um declamador possa assumi-los e, por meio de sua voz, exortá-los novamente ao material, expondo os laços de um momento passado, criptografado, que, no soar do então discurso, parecerá tão próximo como o próprio som vociferado que ecoa em seu nome. Assim, poderei eu dizer o que nunca disse, sem dizê-lo. É na voz ativa de um amante da poesia que se assume a dor enclausurada nos versos empoeirados, tornando em luz o que estava na sombra: o texto estático, mudo, sem vida. É isso que denominam imortalidade? Homens e mulheres, chamas que queimam até às cinzas. Cinzas que, enquanto pó de labareda, contam a história do calor que, certa feita, lhes deu origem. Enquanto houver cinzas, há história! Palavras são cinzas humanas à espreita de curiosos que delas decifrem e revigorem a paixão do escritor que, pelo consumir da chama, sucumbiu. Entretanto, as cinzas não duram para sempre. E talvez esta folha se perca no vento junto a minha presunção ao imaginar que serei lido ou declamado. Talvez, numa poça d'água qualquer, se esgote o meu sonho da imortalidade, fazendo das palavras aqui escritas apenas um borrão, tão distante do que um dia já foi o que aqui estava. Pensando com mais cuidado, nas ruas há tantos homens e mulheres sem versos, sem folhas, sem lápis ou caneta. Todos os dias, tantos que poderiam tornar-se imortais para o mundo são aniquilados pela presença pontual dos fatos, sem deixar margem para que suas vozes gritadas, em uníssono, sejam ouvidas ao pedirem socorro. Voltamos ao silêncio, sempre o silêncio… Eu, que iniciei esse monólogo com o desejo de igualar-me às cinzas da chama póstuma, visando ascender à imortalidade, agora penso: há chamas que não produzem cinzas. E se por milagre venham a produzir, perder-se-ão na brisa da casualidade. Há, neste mesmo instante, tantas labaredas cintilantes que nunca poderão deixar para trás a história de seu brilho, fadadas a serem fogo de vela, a esgotar-se no fim do pavio dentro da cera, sendo a cera descartada como lixo. Por fim, estando a par disso, se amanhã o silêncio me bater à porta, pensarei, antes do fim, naqueles que não têm a chance de pensar antes do fim.