o dia e a noite
I.
Sou do dia, contudo, a noite é minha sombra inseparável,
Amante das dualidades que o sol inscreve no chão,
Das narrativas arrancadas às árvores pelo vento,
Ecos do alvorecer, vestígios do primeiro sopro do cosmos.
II.
Na noite, me desfaço, em queda livre
No silêncio onde portas permanecem eternamente abertas.
III.
Contemplo o rito silencioso das formigas,
Arquitetas do oculto, tecendo o amanhã no útero da terra,
O lago — reflexo celeste —
Azulidade onde as nuvens se dissolvem em mistérios,
Segredos compartilhados com as profundezas aquáticas.
IV.
A noite, vislumbro a mãe primordial,
O mar gélido, o sepulcro que convoca
Os mortos que repousam em meu ser.
V.
Nada rivaliza com a aurora,
Momento em que céu e montanha convergem,
Portais para a evasão dos olhos sonhadores,
Mas é na noite que a vida encontra sua fermentação,
E, enquanto o dia nos purga,
Na noite a loucura é exaltada,
E dela emergem os versos mais pungentes, selvagens.
No limiar do dia, minha alma se estende,
Ainda que a noite teça seu manto em minha pele.
Amo o sol, que desenha sombras nas folhas,
E as confissões murmuradas ao vento,
Ecos do alvorecer, guardiões do crepúsculo.
Na noite, me desfaço em voo,
Longe do ecoar de portas que se selam.
Observo as formigas, em sua marcha silenciosa,
Construtoras de mundos ocultos sob a terra,
E o lago, espelho do infinito,
Onde o céu se derrama em azul e branco,
Narrativas dispersas na superfície da água.
Como ignorar na noite
Sua face mais definitiva,
O mar que abraça o frio, o leito que acorda
Os mortos que em mim dormem?
Nada se compara à aurora,
Porta aberta entre o céu e a montanha,
Fuga para os olhos que sonham em cores,
Mas é sob o manto noturno que a vida fermenta,
E, enquanto o dia nos cura,
É na noite que a loucura se torna sagrada,
Fonte dos versos mais profundos.