BIOESPECTROGRAFIA
meu pai pegava a cadeira e
ia pra baixo da mangueira
levava uma das tesouras de costura
da minha mãe, botava o calcanhar
na quina do assento
e começava a cortar as unhas
pacientemente.
nessas horas, contava muitas histórias.
quando a situação melhorou um pouco
ele comprou um cortador
e tudo passou a ser mais rápido.
e ele contava histórias mais curtas.
depois ele juntava tudo: a lâmina,
o pincel, a cuia de alumínio,
o caixilho, o "pescoço", o espelho
laranja; ia para o tanque
e se enlameava de sangue.
não falava nada nessas horas.
quando cresci, por algum motivo
e por alguns anos,
tive vergonha de me barbear
na frente de meu pai
e só cuidei das unhas do pé do meu avô
quando ele não mais se curvava (só ao tempo)
hoje apalpo, afago e aparo minhas memórias
e o cuidado bruto de tudo
vira um lirismo nem alegre nem feio
meio bonito meio triste