a beleza que sol empresta
Ao alvorecer, a noite se desnuda e meu corpo a sabe por dentro, a sua enfermidade mais latente, o peso que estrangula quem dela, não foge, mas a espreme entre os ossos até o amanhecer tomar seu espaço, ou ela a concede, ainda que nos palpite a dormência nos olhos.
Nada mais há, senão a vastidão da planície que nos aguarda,
O sol ascende, alheio à beleza que empresta ao mundo.
Tua face, farol de claridades, guardo na argila do coração,
Rios, bosques, florestas, cada um um enigma a guardar segredos,
Elevando o trivial ao divino,
Onde o mistério se petrifica, ou se oferece, fruto à mão paciente.
A vida enraíza-se no extremo, no secreto,
Esse fogo que embeleza o efêmero,
Alimento do corpo, quimera da alma sedenta.
A erva brota, frágil, exalando a beleza invisível que
Torna a existência irresistível, amada,
Envolvendo os lugares onde a terra, fértil,
Prepara seus filhos para um amanhã, entrelaçado ao passado,
Essencial como o leito à criança, o beijo ao enamorado, o corpo ao espírito.
Encontro-te, perplexo diante da tua vastidão verde,
Tua cor, promessa de todas as cores, palpável, imensa.
Uma torre adentramos, encontrando o labirinto vertical mais formidável,
Onde não se distingue o alto do baixo, pois não é na superfície
Que cobrimos nossa dor, mas a exibimos, em sangue, uma rosa profunda
Que renasce para que nunca deixemos de morrer,
E tu nos amas em teu gemido latente, tua vontade nos antecipa para a vida.
Não somos mais reféns do enigma, mas sua chave mais evidente,
Como não percebemos antes, mergulhando nos mistérios,
Que os segredos somos nós, e dessa vertigem contagiosa extraímos
A sombra de sua queda, a quem damos um rosto e amamos,
Pois o amor é plural, só é amor na medida em que, como ele, somos.
Não emergi das pedras, dos abismos, porque nunca
Estive apartado deles, nem das cavernas, a noite conhece
O sabor do meu corpo, disperso por essa
Vida eterna, estendi-me sobre a relva para que
Teus olhos, exuberantes, me consumam, com desejo e crueldade,
Pois só assim me entrego para depois
Me devorar de novo, frutificar, ser líquido com essa
Terra que me sustenta, e não me afogo nessa água vermelha
Feita de pedregulho e grãos de areia, pois conheço também
Seus dramas, seu cadafalso, sou árvore, sou
A folha que provoca o vento, sabendo que me escapo do conhecido
Para ser morte, para ser decadência, porque só retorna o que partiu.
E vou, na certeza de tuas mãos a acariciar meus cabelos queimados de sol,
Sou teu filho, mas também tua asa aventurosa, tua voz
Sedosa e profunda, encontro-te antes que a vida me desperte,
Ou parto antes que ela me adormeça, não morro,
E se morro, é para dançar melhor, saltar mais alto,
Com a força das pernas, e arar o campo com mais esperança.
Pois todos os anos chove, todos os anos o sol brilha,
E precisamos nos nutrir para que a vida em nós se manifeste
Em sua mais violenta grandeza, e a amo, ainda que me fira,
Ainda que deslize e me perca em outra escuridão
Que me abriga em seu seio, tenho sangue, tenho noite e dia,
Sou rico, generoso, espalho pelo mundo essa fornalha de pão
Colhido na mesma plantação onde a chuva deposita seu orgulho.
E quando gritar, quero ter o melhor ouvido, para que teu grito
Não se perca, mas reverbere em minha carne, pois ela não esquece
Tua imagem, sou essa argila que sabe poder
Ser um vaso ou qualquer forma que a imaginação deseje,
Cabe no caminho imprevisto, mas se espalha com amor na mais ampla gravidade
Ou no espaço mais curvo, deformado, e em todos esses lugares,
A linguagem saberá me traduzir, fazer minha dor
Ser uma imagem, meu desespero, um símbolo discreto e até elusivo.
E nada é tão antigo ou das pedras do futuro, porque no vagar
De tudo, existe apenas este presente, grato por ser
Essa porta que tudo contempla, e nós, sua testemunha,
Tua cegueira quando necessário, amo, e sou amado,
E tudo se resume a encontros, sólidos, impenetráveis, e aqueles outros,
Suaves como uma estaca de veludo, ensinando-nos a parábola que,
Embora exaurida, continua a nos revelar o que se esconde atrás das fachadas.