poesia
Não procurei, nas sendas que margeiam o meu temor,
A muralha, mesmo fantasma,
Que nos trai pelo rosto,
A face mais turbulenta do desespero.
Não lancei perguntas às quais eu mesmo
Não moldaria em signos,
Que, se não encontrassem eco, ao menos
Me envolveriam no silêncio cósmico que
Compra o cansaço nascido da incerteza.
Não, em ato de fuga da própria sombra,
Mas na moldura que deveria enquadrar a obra-prima,
Não ousei cruzar o lago abissal
Que estrangula a respiração da carne,
Nem o fantasiei como farsa, para que, com
O cinismo, disfarçasse liberdade e não
Ancorado a um mistério que nos reveste
A epiderme e nos aliena do belo essencial.
Ainda que tenha tocado, mais por inocência
Do que por clarividência,
Tão profundo que fosse a chave para abrir
Na escuridão sua porção mais iluminada,
Recordo, alheio, no banco daquela praça
Que ainda me assombra, o semblante delicado
E desafiador daquela que seria o lampejo estonteante,
A estrela isolada, plena, que em sua órbita
Não só irradia luz, mas a convicção de que ali
Se erige uma cidade, um refúgio, talvez,
Onde seres lutariam consigo mesmos pela arte de existir.
E, despojado de toda pretensão,
Com sabor de terra entre os lábios, e no rosto,
A umidade da chuva, mas com a juventude a recompor os fragmentos
Não como alguém que amei, ou que me amou,
Mas como o farol que guiou meu caminho até
Desaguar nesse sonho, onde o bem maior
É a palavra, mesmo que flutuando em sangue.
A sombra do desejo, teus seios, tuas coxas núbias,
E tua boca de enigmas, que me atariam para sempre
A uma galáxia sempre pronta a se entregar como luz e verbo,
Assim, embora o retiro se mostre mais austero, essa fibra
Que incendeia a memória mais severa e me acende
Para um passado até então velado pela escuridão, mas que
Agora é de onde extraio meu sustento, minha bebida, e esse
Momento que, entre um gole e outro, encaramos a vida
Tal como ela é, abundante e silenciosamente nos abrindo
Para uma clareza que ilumina nas sombras os contornos que definem
As formas extáticas da existência.