DO COMEÇO AO FIM
DO COMEÇO AO FIM
tinha muitos planos
planos longos
sonhos curtos
tinha muitas contas
contas grandes
pequenas despesas
tinha muitos anos
pela frente
por trás de leves desenganos
tinha muitos amigos
conhecidos antigos
poucos contatos
tinha até esquecido
em meio à rotina
que a vida passava
tinha muita pressa
pra essa de procurar
pra uma conversa
tinha que chegar lá
num lugar comum
sendo apenas mais um
tinha impaciência
e foi deixando pra trás
a convivência do dia a dia
tinha um certo orgulho de ser
um ser cético e útil
um fazedor de coisas e mais coisas
tinha a certeza da vida
e dúvidas sobre a morte
com sorte viveria muito e muito
tinha um silêncio quebrado
por um bip intermitente
que lado a lado o observava
tinha cada passo interrompido
por aquela cama aerada
mascarada de descanso
tinha um aviso em cada fio
prolongando a vida
agonizada por um fio
tinha tempo pra pensar
e pensar as feridas do tempo
que escoava no soro a cada gota
não há dívidas nem gastos
apenas o desgaste daquilo que aqui fica
a desdita da vida vivida
nada vai mudar
com o nada que vai ficar
não haverá diferença
não haverá vazio
que não seja preenchido
houve uma saída estratégica
os dias e as noites
serão os mesmos
e mesmos serão os passos de quem fica
e o mundo segue do mesmo jeito
o companheiro se foi
arruma-se outro
o funcionário se foi
contrata-se outro
o cachorro e o gato
o passarinho na gaiola
a carne na geladeira
os enfeites de natal
aquela louça fina guardada
pra uma ocasião especial
o pote de plástico não devolvido
o cinema não ido
a viagem dos sonhos adiada
a música silenciada pra ouvir depois
a roupa reservada pro casamento
do filho
da filha
do amigo
nada mais importa
nem a presença
nem a ausência
e agora
o teatro acabou
no clarão do flash
fecham-se as cortinas
um cisco no olho
um risco de subtração
numa foto amarelada
a sinopse de uma recordação
Biguleto