Espelho ou feitiço

Antes, eu mal sabia quem era

Mas vivia sem maiores dúvidas ou medos

E a alegria era pura

Assim como todos os desejos

Como se a vida não tivesse peso

Como se não tivesse segredos ou sentisse culpa

Apenas brinquedos e o tempo presente

Sem passado para lembrar

Sem futuro para temer ou ansiar

Sem um espelho para se ver, se perguntar

Sem defeitos para contar

Sem outro Eu

Do outro lado

Sem estar dobrado

Ou quebrado

Sem me importar com a opinião dos outros

Sem pensar em sucessos e fracassos

Como toda criança pequena

E teve uma dia que eu nem lembro direito

Foi o primeiro

E perdi as contas de quantos mais

Em que o reflexo deixou de ser reflexo

Se transformou em obsessão

Em companhia, mas também em abscesso e solidão

Em parecer suficiente

E se esquecer daquela paz

E me preocupar mais do que viver

E tem sido assim

Desde que me tornei testemunha de mim mesmo

Narrador da própria história

Como um Doug Funny

Garoto, rapaz, homem

Apegado demais ao vício da vida

Se tenho vivido duas

E uma inteira pela metade

Desde que a imaginação ocupou a terça parte

E a introspecção outro quinhão

Desde que o meu impulso de escritor se tornou o meu ritmo

Naquele dia

E transtornou minha realidade

Em sensibilidade, melancolia, emoção