PUNHAL DA AURORA - CARLOS CUNHA

Ainda escuto a fala do meu pai,

iluminando o silêncio de tapeçaria

da nossa casa de telhado verde.

O rio que lavava a ruazinha estreita

não vegetava mágoas.

Ainda escuto a canção da aurora

que tocava o homem do realejo

com seus olhares retos

e o sorriso de orvalho.

Saudade de Maria

com seu olhar umedecido de alvorada.

Muitas vezes, muitas, percorri a rua

carregando sonhos nas mãos inocentes,

brincando com meus irmãos que nesse tempo

eram apenas anjos de porcelana,

num país sem memória.

Hoje que Rominha tem outro nome

e outras as crianças que ali residem,

a perspectiva das casas tornou-se paralela.

Deuses tiranos caminham sobre a lama viva

e os jardins que sorriam,

como as janelas, agora são de nuvens.

Como a infância corre depressa

na terra grávida do tempo.

Os meus castelos,

já não são fantasiados de papoulas,

mas castelos de vento.

Os meus sonhos agora já não têm a cor do gerânio

e o sol que havia no meu olhar

tornou-se uma saudade ancestral.

Ah se o tempo voltasse!...

Talvez pudesse colher a flor de seda

que deixei entre um prelúdio

num santuário

que nunca foi de súplica.

Ainda bem que minhas ilhas continuam verdes,

e as palavras do meu filho morto permanecerão desconhecidas.

Só assim, afasto da boca o gosto de luto

e continuarei povoando a minha alma de espelho,

distribuindo a minha quermesse de ternura entre os homens

que não conheceram a rosa soturna

e que jamais serão vizinhos, como eu sou, do espírito de Deus.

(Cancioneiro do Menino Grande/1972)

Carlos Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 26/01/2024
Reeditado em 26/01/2024
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