UM POEMA CONFESSIONAL
Cadê a angústia
aquela companheira das horas inteiras
das manhãs escuras de sábado
da cama inquieta do quarto
dos travesseiros suados
das noites em claro
das unhas roídas
dos horários atrasados
e da demora em chegar em casa?
Cadê a angústia
do moer das carnes entranhadas
do eco que vem do século passado
do hálito pantanoso da Hidra
do grito sufocado pelo nó na garganta
da mão invisível que me apertava o peito
do choro seco que desidratava a boca
e do Mefistófeles que me esperava
no exato meio-dia das madrugadas?
Cadê a angústia
dos avermelhados poentes dolentes
dos arranhados versos de Florbela Espanca
da tristonha lentidão dos adágios
das anestesias alcoólicas dos bares
das azias aliviadas pelas magnésias bisuradas
dos cansaços neurastênicos dos músculos
dos chiliques escandalosos dos histéricos
e dos apetites irascíveis dos coléricos?
Se alguém um dia a encontrar
diga-lhe que passo muito bem sem ela
já vesti até a camisa amarela
que me casei outra vez com a mesma mulher
que não como mais com aquela velha colher
que estou a ver os meus netos crescerem
à beira-mar de um interminável janeiro
carregando menos chaves no chaveiro
e que conquistei minha carta de alforria
assinada com mesma caligrafia
e o azulado que se encontra na palavra alegria