UM POEMA CONFESSIONAL

Cadê a angústia

aquela companheira das horas inteiras

das manhãs escuras de sábado

da cama inquieta do quarto

dos travesseiros suados

das noites em claro

das unhas roídas

dos horários atrasados

e da demora em chegar em casa?

Cadê a angústia

do moer das carnes entranhadas

do eco que vem do século passado

do hálito pantanoso da Hidra

do grito sufocado pelo nó na garganta

da mão invisível que me apertava o peito

do choro seco que desidratava a boca

e do Mefistófeles que me esperava

no exato meio-dia das madrugadas?

Cadê a angústia

dos avermelhados poentes dolentes

dos arranhados versos de Florbela Espanca

da tristonha lentidão dos adágios

das anestesias alcoólicas dos bares

das azias aliviadas pelas magnésias bisuradas

dos cansaços neurastênicos dos músculos

dos chiliques escandalosos dos histéricos

e dos apetites irascíveis dos coléricos?

Se alguém um dia a encontrar

diga-lhe que passo muito bem sem ela

já vesti até a camisa amarela

que me casei outra vez com a mesma mulher

que não como mais com aquela velha colher

que estou a ver os meus netos crescerem

à beira-mar de um interminável janeiro

carregando menos chaves no chaveiro

e que conquistei minha carta de alforria

assinada com mesma caligrafia

e o azulado que se encontra na palavra alegria

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 19/01/2024
Reeditado em 19/01/2024
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