Eis um canário
Em minhas ilusões, o que resta senão a imagem artificial do que penso ser e almejo me tornar? É esta a minha realidade, uma gaiola de terno e gravata. Um homem aprisionado em suas próprias futilidades, que, ao ver alguém lendo um livro em alemão, sorri logo, por ser fluente no tal do alemão. Que restou de mim além de belos textos decadentes, que não passam de palavras em um tom verborrágico sobre assuntos do chá da tarde?
Se Machado me visse, diria de imediato: "Pobre canário, de vestes tão elegantes mas de canto tão maltratado. De penas brilhantes, de peito estufado, de barriga cheia, mas ferozmente engaiolado." Eu o entendo, de fato é o que se segue. Como disse Pessoa: “Fiz de mim o que não soube, E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.” Agora é tarde para pôr abaixo a máscara.
Se me soltassem na natureza, eu não faria mais do que buscar uma chácara onde pudesse depositar nos residentes todos os meus tantos reincidentes, os cantos que me fizeram canário de varanda. Veja a dualidade, visto ternos pela noite e bermudas durante a tarde. Mas se tenho visitas, logo apanho o traje fino e, sem pensar duas vezes, deposito no convidado toda a minha verve. Quando ouço dentre os canários o nome Kant, ponho-me logo à frente, por mais que esteja distante, para dizer se é falso ou verdadeiro o discurso do livro na estante.
O que resta de uma pobre alma como eu? Fui útil a vida inteira para trazer gozo aos ouvidos alheios. Cantarolava Wagner com a mesma facilidade de quem entoa qualquer amenidade. Diziam-me: Gênio! Eu pensava: e como! Até descobrir a verdade. Eu era um canário engaiolado! Não mais do que um miserável de alto vestuário. Não mais do que um repetidor do belo, completamente desmantelado.
Quem dera eu pudesse dizer amém sem recitar a bíblia inteira. Quem dirá eu pudesse pensar, sem a mim assassinar, no percurso dessa esteira.