A cidade, o sujeito mequetrefe e o silêncio
Um algo inesperado, intrometido aparece.
Como se invadisse o espaço, ora vazio, porém, nem por todo abandonado, ocorreu de, inesperadamente aparecer. Não trouxe nada além, e não se pode desfizer, da incipiente presença cansativa de sua pessoa e fala troncha (como se diz nos rincões sertanejos) que sugerisse uma bem esperada visita, não. Chegou como o forasteiro, com a diferença que esse traz a possibilidade de uma boa conversa, aquele, nem isso. Sujeito pernicioso. Avesso a qualquer modo de boa vivência, o fulano era a estupidez encarnada. Quando partiu não deixou saudades; bem o contrário, a cidade, ou, ao menos parte dela, respirou aliviada: aquele sujeito, torpe nos modos e biltre no caráter, tornava a pequena cidade assunto nacional, tantas eram as inconveniências que o mequetrefe sujeito anunciava. A cidade, como se fosse dia Nacional, fez festa e distribui brinquedos.
Inesperado acontecimento, mas, como se disse à época, carregado de significado. Ninguém lamentou. Não houve, nem aos ouvidos miúdos, nada de nadinha, de lamentação. Até o prefeito, amigo de longa data, assim àquele dizia, não se esforçou em pronunciar discurso, não. Por parte das autoridades, falavam-se de tudo, desde a necessidade duma escola, um posto de saúde, um projeto na câmara local, enfim, falava-se de tudo, menos do ocorrido, ou seja, da partida do fulano. Não havia outra coisa, talvez a mais importante, que ver a cidade em festa. As crianças corriam como se não houvesse a triste memória de dias há poucos passados. Jovens casais de mãos dadas, como se o próximo passo fosse para o altar, caminhavam tão felizes que nem parecia que a cidade havia sofrido por tanto tempo a presença daquela nefasta figura. Até o Padre Bento, cujo nome era Timóteo, estava mais sorridente; antes era raro vê-lo, e quando era visto, estava sempre com pressa e cara amarrada.
O sujeito esquisito, há muito ausente, tinha fugido como o homicida foge tão logo comete o crime. Porém, e para surpresa de todos, o biltre aparece como se nunca tivesse partido.
O prefeito era outro. O padre Bento, nome verdadeiro, Timóteo, morrera há 3 anos. Julinho, o garoto apaixonado por Flavinha, se casara com Vilma, a amiga da amiga da antiga paixão. Julinho, agora um vistoso rapaz, tornara-se um respeitado médio. Fúlvia, a sardenta menina que sonhava em ser modelo, mudara para a capital e agora era uma premiada atriz e diretora de cinema. Dona Noca, a mãe de todos, continua a mãe de todos: dos filhos daqueles que ela tanto agradava com seus doces e conselhos ternos. Dona Noca era uma espécie de patrimônio gastronômico regional, afinal, seus doces tinham sidos assunto de reportagens para emissoras nacionais. Era tão querida que Nana (Jurema) e Naldo (Roberto), vereadores, tinham projetos em trâmite na casa legislativa para renomear a avenida central, de General Anastácio Roberto Rodrigues Ribeiro, para Dona Noca Quitudeira (Mafalda Marighella Soledad Lamarca). Ambos os vereadores contavam com apoio da população e as bençãos do Padre Sérgio, que já tinha sido coroinha.
O sujeito mequetrefe apareceu. É assunto conhecido que sua presença incomoda a reputação da cidade. Até membros da própria família (mãe, irmãos e sobrinhos), não se sentiam ä vontade com sua presença. A mãe, desde que o sujeito mequetrefe apareceu, deixou de ir á missa. Irmãos e sobrinhos, desviavam seus caminhos para não serem vistos com a indesejada figura. Enfim, desde que apareceu, a cidade e parentes do indesejado, tiveram suas rotinas alteradas. As ruas, antes lotadas de crianças, passou ter características de cemitério. Nos finais de semana, as festas e cantorias no coreto, cederam espaço para um vazio capaz de se ouvir o uivo do vento. Uma "cidade morta", disse, com lágrimas nos olhos, seu Raimundo, o homem mais velho da cidade (tinha uma estátua sua ao lado do coreto) e respeitado juiz de paz.
Fato é: desde que o sujeito mequetrefe, tão mequetrefe, que muita gente o comparava a certo mequetrefe juiz e outro, igualmente mequetrefe, procurador, desde que o sacripanta apareceu, a cidade perdeu seu encanto. Casamentos e batizados, para tristeza dos moradores e noivos, passaram a serem celebrados na cidade vizinha. Velórios e sepultamentos, por si, um acontecimento introspectivo e de despedida, mas que, por seu carácter de adeus, passaram a ser vividos somente pelos parentes.
A volta do sujeito caiu como um cataclisma. Alternou todos os sentidos da solidariedade, da companhia. O sujeito, tanto quanto uma praga, rompeu todos os laços entre as pessoas. Sua chegada trouxe um grau de insegurança que ninguém arriscava por a cara na rua. E nesse novo modo de vida, a vida passou ser regida por uma espécie de egoísmo coletivo, embora todos concordassem: era um tipo de egoísmo que se destinava à proteção de todos.
Mas...o que o sujeito mequetrefe tinha feito que ninguém tinha coragem de enfrenta-lo?
Ninguém respondia a pergunta. E a cidade, refém do seu próprio silêncio, arrastava sua existência, até que o tempo desse seu veredito.