uma e outra invaginação
No ventre, a rua se desvenda, nada sabemos,
senão a fome que nos cega e conduz
ao seio eterno; mãos graciosas nos preparam
para o próximo ato, já não discernimos
um ponto na imensidade, mas intuímos logo ali
um lago, sereno e amante, que ocasionalmente
nos envolve e nutre sob as asas protetoras.
Mais tarde, esquecemos dessa invaginação
à beira do precipício, e diversos fios nos
interpelam ou atravessam. O medo, o silêncio
assustador, a impaciência que quase nos mistura
com a vida, o riso discreto, mas intenso,
nos desdobra ao ingressarmos na atmosfera
onde muitos nos são impertinentes, e, contudo,
nos presenteia com reversos que perduram
na esperança, aprendendo com os olhos.
Nossas mãos são molduras de janelas sombrias
ou claras, mas têm fome e nos devoram,
nos despem, nos deformam e formam.
Delas, nos desprendemos, com a sensação
de que outro rio nos chama. Aprendemos
a nos afogar, a ser pássaro entranhado
na terra, ou criatura de asas a indagar
qual o momento mais apropriado para o pensamento
silenciar de sua abundância.
Então, um a um, os postes de luz que nos estremece
e nos ilumina vão apodrecendo, e as estradas escuras
vão perdendo o movimento, até que nos damos conta
de que outra invaginação nos aguarda. Nos tornamos vento,
a árvore que morre e aquela que renasce, as pedras,
as crianças mal sabendo quanto pesa uma palavra,
somos essa rua de pedra, essa pedra, esse vão
que nos separa dos outros, esse outro que nos foge,
esse céu soberano emborcado misteriosamente bem colocado,
essa mãe que perde o filho, esse filho que soube
de nossa pequena masmorra, o embrutecimento desses prédios
gigantes, essa gente sisuda que engoliu uma estátua
e sabe é o destino que balança as asas
e que são as noites que nos dão o sexo das montanhas
e são os dias que nos escondem do amor,
somos breves, somos um estalo do graveto pisado,
e somos essa floresta onde a árvore cai porque ela existe.