NO INTERIOR DO MEU FUTURO CADÁVER

Quantas mortes ainda trarei

no interior do meu futuro cadáver?

Quantas vezes ressuscitarei das noites

para acompanhar o envelhecer dos dias

a partir das auroras em que acordo espantado?

Quantos sonhos serão espatifados

no esbarrar com as paredes do quarto?

Quantos lenços de papel descartáveis

irei usar para enxugar as lágrimas que trago

por detrás das aparências e dos disfarces?

Quantas ocasiões até lá escutarei calado

as afrontas cujas respostas embargo

no travar dos dentes e dos lábios?

Quantas estrelas deixarei de ver

além dos confins do universo enxergado

apenas porque meu telescópio

está velho, míope e estrábico?

Quantos talvez fiquem para trás

pelo simples fato de chegar atrasado?

Quantos desejos serão desapontados

preocupado em pagar as contas

e de ser visto como bem-comportado?

Quantos passos deixarei de andar

por causa do receio de escorregar

tombar ao chão e machucar o braço?

Quando esquecerei de mim

e me misturarei à multidão ao lado

para com todos nela seguir a boiada?

Quando desistirei de pensar o que penso

para me desviar dos pensamentos desquietados

sossegando-me no sofá da sala assistindo seriados?

E quando nada mais disso em mim houver

é porque fui devidamente morto e cremado

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 02/01/2024
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