BRASÍLIA VINTAGE
BRASÍLIA VINTAGE
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
O nome da rua? Não é rua, é risco quase perfeito no mapa árido.
Cerrado cercado de prédios, árvores, cigarras anunciam a chuva na seca manhã.
Rua sem Fim, que retorna a si mesma, em forma de letra e de dáblios geográficos.
Na Brasília vintage há formas retas onde transitam falsos profetas.
Há linhas leves nas quais deslizam promessas não cumpridas.
E há planos pilotos nos quais nada se planeja e pilotis nos quais tudo se faz, tudo se brinca, tudo se fuma, tudo se bebe, tudo se mora na rua.
E há pontes que mudam de nome, como se derrubam estátuas, que caem sobre as farsas de heróis de mentira.
Mas não há heróis de verdade no panteão da Brasília vintage.
Não há solidariedade. Verdade.
Nenhuma novidade.
Apenas se juntam, muitos, poucos, na hora da crueldade.
Há em Brasília, um fogo que sopra do corpo do índio queimado. Que não se apaga.
É a cidade vintage do prédio no qual vive a menina caridosa.
Preocupada com o tsunami da Indochina, logo ali.
Ela coleta e quer enviar arroz, feijão, pipoca e tapioca. Para longe. Para bem longe.
Mas na sua frente, bem na frente, logo aqui, outra criança (suja e magra) mexe o lixo da esquina, com fome, logo aqui.
A menina caridosa não enxerga.
Nos bares, cafés e bibocas insensíveis um branquinho burguês opõe seus problemas.
Interdita o pedido do pedinte passante que carrega dor, humilhação problemas de verdade. Crueldade.
Tudo cortado olhos severos, creio verdadeiros, da indecisa Madona que toma decisões. Seguiu em frente. Foi longe. Sem sair do lugar.
É a cidade pensada na prancheta do arquiteto da foice e do martelo.
Alimenta (ao invés da igualdade) carros, desilusões, distâncias, ônibus lotados de gente.
Figurantes, candangos de hoje, pano de fundo da foice que martela em forma de vingança na porta do memorial da falta de memória.
Memória? Há uma memória na cidade. O coronel e seus cavalos.
O porrete, o pente de balas e o grito arrogante. Eu prendo, arrebento.
A multidão dispersa, descrente. Dispersa para sempre.
A multidão ressurge em torno de gritos e de falsos mitos, mentirosos, de uniforme por dentro, distribuídos em zeros em ordem numérica crescente.
Mais memória. Havia, bem antes, aqueles que torturavam e abusavam anaslídias.
Faca, sangue, tara, impunidade. Era 11 de setembro de 1973, a data que não se lembra, porque dela a lembrança da memória apagou. Quem foi?
Mais Memória. Há uma herança de meninos que perguntavam que país é esse.
Sabiam a resposta.
É o país que os interessava. E a seus pais. E a seus pares. E a pequis e peris.
Cabeludinhos de colina. Revolução de mentirinha. Culpa dos pablosperuanos que hoje não chegam mais da Bolívia. Vem da Venezuela.
Na Brasília vintage tudo é artificial como forma de totalidade natural.
Tudo é normal, porque tudo é desigual.
O cimento sufoca os olhos d’água.
E o privilégio cimenta a esperança da terra de poucos, na qual há também, entre os poucos, os muitos chamados e os poucos escolhidos, bíblicos fingidos, entre oprimidos, trabalhadores e salteadores de sempre.