O DISSONANTE
ainda não foi declarada oficialmente
a minha derrota
mas isso é mero exercício de formalidade
ainda assim do meu porão eu tomo nota
vejo o poeta sem cicatriz
distribuindo gotas de sabedoria
como quem planta amendoeiras no parque público
sua poesia não fede esgoto, não fode
ela empodera e dá sopro de vida
aos perfumados maridos e suas elegantes senhoras
que entram amorfas nos camarins
e duas horas depois saem de lá
com penteados de realeza em dia de foto oficial
observo e tomo nota
do correto cidadão que é pilar da sociedade
com sua coleção de cavalos premiados e mulheres no alçapão
que constrói e vende apartamentos de luxo
sem nunca ter segurado um tijolo na vida
vejo também o filantropo, o investidor social
de consciência renovada
balançando sua pança e seu talão de cheques
ele chega aos jantares em carros dirigidos
por motoristas de carteira assinada
usa fraque, gravata de seda egípcia
o espelho de seus sapatos brilha mais
que o lustre importado que ilumina o salão
sua família é fotografada para revistas
e se vende como quem vence uma guerra
tem assessores e guarda-costas dedicados
tem mãos beijadas e pescoço arqueado de medalhas
é um tipo de doutor e jantou
mais de cinquenta vezes em Paris e Nova Iorque
enquanto ele dorme há uma legião de soldados
rezando a Deus por sua saúde e prosperidade
controla rebanhos humanos
sem tremer o músculo da face
inicia e encerra guerras e revoluções
doa dinheiro para erguer catedrais e derrubar governos
quem toca em suas vestes ria à toa
por oito semanas e meia
do meu porão sou o que observa
não integro suas caravanas ruidosas
sou o que fica fazendo ponderações
um estrangeiro entre todos aqueles homens
de chapéu na mão e olhos apaixonados
figurantes que brilham dois segundos
e depois retornam para suas mulheres e filhos
se sentindo três quilos menos miseráveis