Receita de aprendiz de poeta
transite por seus pensamentos
abaixe o volume da noite do quarto
até que ouça apenas seus passos por lá
reúna todas as suas lembranças boas
confunda seus sentidos com elas
chore exaustivamente e também sorria
depois coloque-as em banho-maria
queime em fogo alto todo o resto
esgote seus ímpetos e anseios
livre-se de toda sua praticidade
considere a beleza da inutilidade
reflita sobre as borboletas e os rios
há esplendor em espelhos d’água
há muita vida em rios pensativos
muito antes de treparem em flores
ou de se darem de comer às aves
as borboletas já sabiam fazer poesia
sente na cama ou deite ou fique de pé
que se dane a forma como você fique
somente permaneça, só, e sozinho
expulse toda a luz do recinto
mantenha o luar atrás do blecaute
percorra o vazio de suas memórias
evite os precipícios e as lacunas
minere a pedra da sua loucura
prosterne-se instantes diante dela
ascenda à luz do arcabouço das palavras
todas carecem de mais sentido
tudo goza de incompletude
até mesmo as palavras mais ditas
conjuntos (des)ordenados de letras
pouca coisa é assim tão capaz
torne angular a pedra reverenciada
acomode palavras sobre ela
uma a uma em forma de versos
e versos sobre versos em estrofes
acomode tantas quantas comportar
fale menos palavras de amor e de dor
amor e dor podem oprimir a estrutura
esqueça até de infância e velhice
harmonize os versos ao léu desse gosto
meça-os ou rime-os se necessário
evite sobrecarregar qualquer ponto
troque palavras de lugar
comute-as, conjugue-as, equilibre-as
demore-se em avaliar cada detalhe
lembre-se que ainda estão a sós
retrate demoradamente sua obra
e deixe-a descansar em algum canto
adormeça algum tempo com ela
prove-a nos dias seguintes
berre-a, cante-a, bise-a, ouça-se
antes de servir aos amigos
certifique-se de que ela dance feliz
no ritmo que lhe foi dado
-- esse poema foi publicado em meu blog pessoal (https://antoniobocadelama.blogspot.com/) em 10/5/23 --