Livros

Eu me lembro de estar envolto em livros,

Teus livros, surrados e marcados pelo tempo

E tu, marcado pelos livros e surrado pela vida

E eu, surrado e marcado pelo teu silêncio

Arrebatado pela tua presença cheia de luz

E de sombra, como um sol exausto que se deita.

Eu me lembro de abrir os livros;

Eu me lembro de ser aberto pelos livros

Que eram teus — e eu também era teu

E eu percorria as páginas como quem investiga

E, examinando-os, eu ia também me descobrindo.

E nessas incursões eu me deparava com os teus grifos

Tuas anotações pelas estreitas beiradas

E estreitamente eu me esgueirava pelo teu passado

Relendo cuidadosamente as passagens

E, a cada linha, tua voz ecoava em meus pensamentos.

E me recordei da forte tempestade

Que certa vez irrompeu os limites da nossa casa

Vertendo sobre os livros um desaguar pesado.

E entretanto, apesar de condenados,

Tu não os descartaria;

E tu amaria os livros mesmo úmidos, estufados e feios

E eu te amaria mesmo úmido, estufado e feio.

Tu os guardaria como tesouros a sete chaves,

Os livros que depois me embalariam o sono

Sob uma tarde tranquila de criança sem alardes

Cuja mente era uma pradaria fértil de fábulas pueris.

E eu me deparava com as dedicatórias dos livros

Apenas para descobrir que alguns deles eram usados,

Que, antes de ser nossos, eles já haviam sido de outros

Como nós, também, viríamos a ser de outros.

Eu vasculhava esses livros oriundos do acaso

E eu imaginava de onde é que eles teriam vindo

Assim como eu imaginava de onde é que tu terias vindo

Tua pequena cidade, que visitei apenas nos sonhos.

E, se um dia eu escrevesse um livro,

Na contracapa eu dedicaria ele a ti

E muitos anos depois ele seria passado adiante

Até chegar nas mãos de outra criança rodeada de livros

Porque a vida é assim, sempre cheia de recomeços.

pedro toscan
Enviado por pedro toscan em 29/06/2023
Reeditado em 06/09/2023
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