Livros
Eu me lembro de estar envolto em livros,
Teus livros, surrados e marcados pelo tempo
E tu, marcado pelos livros e surrado pela vida
E eu, surrado e marcado pelo teu silêncio
Arrebatado pela tua presença cheia de luz
E de sombra, como um sol exausto que se deita.
Eu me lembro de abrir os livros;
Eu me lembro de ser aberto pelos livros
Que eram teus — e eu também era teu
E eu percorria as páginas como quem investiga
E, examinando-os, eu ia também me descobrindo.
E nessas incursões eu me deparava com os teus grifos
Tuas anotações pelas estreitas beiradas
E estreitamente eu me esgueirava pelo teu passado
Relendo cuidadosamente as passagens
E, a cada linha, tua voz ecoava em meus pensamentos.
E me recordei da forte tempestade
Que certa vez irrompeu os limites da nossa casa
Vertendo sobre os livros um desaguar pesado.
E entretanto, apesar de condenados,
Tu não os descartaria;
E tu amaria os livros mesmo úmidos, estufados e feios
E eu te amaria mesmo úmido, estufado e feio.
Tu os guardaria como tesouros a sete chaves,
Os livros que depois me embalariam o sono
Sob uma tarde tranquila de criança sem alardes
Cuja mente era uma pradaria fértil de fábulas pueris.
E eu me deparava com as dedicatórias dos livros
Apenas para descobrir que alguns deles eram usados,
Que, antes de ser nossos, eles já haviam sido de outros
Como nós, também, viríamos a ser de outros.
Eu vasculhava esses livros oriundos do acaso
E eu imaginava de onde é que eles teriam vindo
Assim como eu imaginava de onde é que tu terias vindo
Tua pequena cidade, que visitei apenas nos sonhos.
E, se um dia eu escrevesse um livro,
Na contracapa eu dedicaria ele a ti
E muitos anos depois ele seria passado adiante
Até chegar nas mãos de outra criança rodeada de livros
Porque a vida é assim, sempre cheia de recomeços.