TATUAGEM DE DENTRO
É preciso me revisitar.
Então, bato à minha porta
para me socorrer.
Entro.
Os sons estão distantes
mas uma dissonância parca
apita sobre os dormentes dum tempo que pulsa.
Soa-me um estranhamento.
Há um trem que só parte
sob os olhos dum alto relógio,
zombeteiro que tudo vê.
O lugar é sempre o mesmo
e foi preciso coragem para entrar em mim.
Respiro fundo e ouso continuar.
À entrada da porta
percebo que as cadeiras de treliça saíram da calçada.
Ninguém há para comentar os malfeitos dos outros...
A vizinha que sempre me aguardava
com um café recém coado e
com o pão sovado já no forno
partiu sem me dizer "até logo".
O vendedor de "sonhos-de valsa" já não está na esquina.
A atmosfera parece alheia ao todo transformado.
Inspiro pelo cheiro de laranja no ar, a brotada da terra vermelha.
Nada.
O ar é insonso e o Sol continua quente de ferver...
Ouço o mesmo arrulhar das pombas ao fundo do cenário dum tempo.
Uma charrete, sempre a descer a rua, ativa minha memória musical.
Os bolinhos de chuva acariciam meu sensorial ali tatuado.
De repente...-sou criança! e para mim tudo ainda é começo.
Arregalo os olhos curiosos e o sorriso imotivado ao tudo.
Tudo me encanta! O tudo que sempre parece ser para sempre!
Então, me escondo dentre os pés de café...para alguém me achar.
Quem sabe?
É Junho novamente, o mês das Juninas comemorações.
Mês de também comemorar a vida. Agradeço.
Abro o " correio -elegante" dentre o burburinho da quermesse.
Ali, o menino diz que me espera ansioso, para a dança do casório.
E também me desenhou um coração eterno que pulsa nos traços imortais.
Capricho na maquiagem que evidencia o sopro de vida.
Para o meu buquê escolho delicadas flores do campo,
porque são lindas mesmo quando desidratam no descompasso das horas.
Mas eu ainda nem sabia que flores murcham!-ninguém me contou, descobri sozinha.
E no meio da festança...o aviso.
Soa o sino de sempre que me obriga a despertar de mim.
Ouço a AVE-MARIA. Um afago à alma.
Que diz já ser hora de sair de lá de dentro para readormecer no que nunca vai embora.
Hesito, mas a realidade me vence.
Fecho a porta,a tomar o cuidado de não acionar a tramela.
É preciso encenar em todos os cenários, mesmo nos existentes.
Saio em silêncio a apenas me levar na indelével tatuagem de dentro,
A do tudo que já não existe bem logo ali...no meu tão apressado cenário de fora...