CANTILENAS DE UM VELHO POETA
Sou poeta das horas inteiras
dos momentos adversos
da mudez das paredes alvas
do segredar confidente dos ventos
dos intervalos alongados dos minutos
e do pasmar inesperado dos acasos
Sou poeta dos interiores ocultos da alma
dos escaninhos das memórias não lembradas
onde se escondem o seio da minha mãe
o ciúme de quando descobri que ela era casada
meu primeiro dente de leite arrancado
e a vela que não apaguei
em meu mais primitivo aniversário
Sou poeta das noites claras
dos travesseiros acordados
em que sonhos ficam enfronhados
das companheiras sombras matinais
das madrugadas embriagadas
e das loucuras mais desvairadas
Sou poeta dos beatos não santificados
dos pecados secundários
do inconfessável dos confessionários
das conversas fiadas e dos tiques bizarros
dos deuses mortos que ficaram para trás
em Atlântidas submersas e afogadas
ou em bibliotecas incendiadas
embaixo do horizonte avermelhado da Babilônia
que há milênios já não existem mais
Sou poeta dos antepassados
dos paralelepípedos manchados de histórias
das viúvas e dos órfãos deixados
dos desejos espirrados nos lençóis
do transpirar dos segundos fatigados
do calmo envelhecer dos retratos
dos sopros que vêm do passado
e do azulado bailar dos fogos fátuos
Sou poeta dos arco-íris das jujubas
do escorregar dos dias nos parques
dos rastros no céu onde as nuvens passam
do inquieto andar das formigas nas calçadas
do enrugado olhar das janelas
das folhas secas em cima dos telhados
da solidão dos prédios abandonados
e do desmaiar das tardes alaranjadas
Sou poeta
porque sou poeta
brotado do ventre dos livros
e com o destino traçado
para ver a vida por cima
por baixo e por todos os lados
e se não tivesse nascido poeta
com certeza seria alado