O jardim de pessoas
E eis que, enquanto caminhava, divisaram-se ante mim os dois portais dos jardins da existência...
Raptou-me o primeiro jardineiro ao seu jardim.
Guardado por sete guerreiros duros e altivos como um minarete,
seus cultivares a mim se lançavam, amotinando-se uns contra os outros como plantas carnívoras, cada qual seduzindo-me com seus encantos:
Primeiro as roseiras, com suas pétalas em mil tons de champanhe, rosa e vermelho, prometiam ramos sem espinhos e aromas curativos caso eu lançasse ao alto minha sorte;
Adiante, os girassóis perfaziam ao seu meio uma passarela, asseverando-me o culto eterno caso ali eu passasse;
Livrando-me destes, perdi meu olhar entre cem mil lírios d’água que, hipnóticos, garantiam-me o frescor dos anos, se em seu doce lago eu me banhasse;
Dálias e crisântemos emolduravam imaculados copos-de-leite, que ofertavam a saciedade a quem no vazio de seu íntimo se alojasse;
Por fim, quase enredado nas delícias criadas pelo jovem cultivador, uma inumerável variedade de orquídeas, como fractais de um milhão de cores, juravam o tudo poder, se ali eu vendesse minha fidelidade!
Já quase ausente de mim mesmo, um braço pretérito reclamou ao jovem a autoridade de mostrar-me também seu jardim.
Um espírito com um antigo livro nas mãos vigiava seu portal, estreito como greta, árduo como o labuta do servo, exigente do rastejar de quem por ele quisesse adentrar.
Ali nenhuma flor se exibia, não havia aromas, nem formas nem cores: em uma única assembleia, os filhos e filhas dos homens juntos entoavam um hino ao seu velho jardineiro:
Primeiro, os pobres maltrapilhos, que sorriam agradecidos pelos seus andrajos, com seu riso de mil quilates sem preço;
Adiante, mulheres ao lado de homens me estendiam seus braços para que eu tomasse meu lugar na roda da plenitude do nada ser;
Sem me livrar da presença dos precedentes, achei-me fitando cem mil decrépitos, que ofertavam-me nada mais que a doce morte dos dias;
Ladrões, viciados, prostitutas e corruptos lançavam suas nódoas se enchendo do prazer da cor alva das vestes do hortelão;
Por fim, rendido às promessas do que parecia um horto de ervas daninhas curadas de sua malignidade, um milhão de rostos não juravam poder algum, apenas apresentavam sua diversidade agraciada se ali eu aceitasse seu convite à fidelidade!
Resolvi neste último ficar, e proferir a todos quantos puder a nova maravilhosa de lavrar no jardim de pessoas!
28.02.23