... Reticências
Eu sou filho do acaso do tempo ligeiro, um párvulo rebelde e inocente
Nascido na beira da noite, no templo do lar e sem o alarde da mãe-deusa
Filho do açoite da parturiente no ímpeto do útero, da mater paciente e persistente
Que rompeu o mundo pelas mãos d’uma estrela que, tal qual a d’alva, encheu o ocaso da tarde de janeiro de resplendor e beleza
Eu sou aquele mancebo que desde cedo sonhava feliz, mesmo na utopia, em mudar o mundo
Crescendo, na peleja e no calor dos dias, calou-se ante a realidade dura e atroz, feriu e se feriu, chorou de dor, pediu perdão e como fera se atreve com valentia
E a esmo pelas suas próprias quimeras, mudo e infeliz mudou primeiro a si mesmo, como um arauto gritou alto no seu interior, ecoando no seu eu mais profundo
Tamanha ânsia causou-lhe vômito em profusão e foi expelido das entranhas e estranhamente acordou da sua letargia
Tornou-se então no passo sem rastro do desimportante sem rumo, que perambula pelas ruas da cidade, que desfila e destila sua rebeldia e sua ideologia
Que segue a luz do astro perdido, sem o brilho e o trilho dos descaminhos em busca da senda certa da vida errante, incerta e fatal
Tornou-se nos olhos do poeta que contempla a calada noite pela janela da alma, que se inspira no fulgor da escuridão e que morre como vampiro na claridade do sol do dia
Tornou-se no louco atravessado pela existência, fadado à mesma sina de todos, encantado com os desencantos das lendas que ninguém assina, indignado com a história que lhes foi mal contada e que ainda é repetida, mas que agora desdenha dela e desenha com as suas palavras o futuro do ontem para se tornar/conhecer-se no presente do amanhã, cheio de interrogações e reticências, como um sinal de alerta e sem ponto final…