CURRICULUM VITAE AO CONTRÁRIO

Já sofri a humilhação das hemorroidas

a purulenta vergonha dos furúnculos

e as tempestades matinais das diarreias

Já senti a dor gritante da apendicite

o vazio dos dentes arrancados

e o medo das seringas nos meus braços

Já tive a traição dos parentes

as mágoas dos amigos idealizados

e os lutos das perdas jamais superados

Já houve um tempo em que sonhava

que o céu era tão azul como eu olhava

e que anjos atrás das nuvens habitavam

Já fui demitido de empregos que gostava

morei em casas emprestadas

e muitos sonhos tiveram que ser rasgados

Já levei muita tapa e porrada

meu nome ficou sujo na praça

e só não me suicidei porque eu me amava

Já fui metido e invocado

afoito, rebelde e estourado

esmurrei parede e um dedo ficou quebrado

Já fui mais deixado do que deixei

fui pego menino roubando confeitos

e demorei para reconhecer meus defeitos

Já chorei sozinho nos quartos ao lado

fui por Deus várias vezes abandonado

como se rezar fosse apenas chover no molhado

Já passei da idade de morrer jovem

dessa imortalidade não me livro mais

e continuo na estrada à espera de novas

e requentadas manchetes de jornais

* * *

De tudo já sobrevivi um pouco

e agora tenho uma mulher que é amada

uma filha ansiosa e espevitada

e um neto que é bonito pra caralho

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 11/11/2022
Reeditado em 11/11/2022
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