PRIMAVERA
desmontei, peça a peça,
minha cabeça.
desatei os cabelos,
guardei os olhos num cofre.
a pele do crânio, pouco espessa,
cuidadosamente dobrada,
(homem zeloso não sofre)
pus numa caixa antiga de sabonetes,
assim como o nariz,
que logo sentiu a essência na velha caixa impregnada.
cuidadosamente separei os lábios das palavras,
guardando-os em formol.
o queixo não muito pronunciado foi lançado aos cães.
removi todos os dentes e formei um colar,
posto para secar ao sol.
à língua, ainda presa à garganta, restaram correntes;
soldei o maxilar.
perdi uma orelha.
achei outro dente.
a caveira desnuda,
da cor do tempo que lhe assombrava,
lançava uma gargalhada muda e oca,
projetando uma sombra indefinida.
o trabalho que nunca acabava
por fim chegou ao seu ápice na mente,
misteriosa e temida.
vazia estando a calota
e lavada em água corrente,
semeei margaridas.