A CASA MUDA

bem me lembro, ainda, do silêncio,

que até hoje me vem à mente em trovoadas.

silêncio do chão sem fim de longas pranchas

de madeira outrora nobre, hoje apenas tábuas pregadas,

gastas, opacas e cheias de manchas.

silêncio de paredes que jamais disseram algo

por talvez jamais ouvir debaixo de tanta tinta;

camadas e camadas de restos de lata, vencidas,

a cara de quem sufocado em tédio vem e pinta

sobre preciosas bobagens escritas para serem esquecidas.

e onde estava eu naqueles dias de mudez nauseante?

poderia estar tão mudo que nenhum eco teve digno futuro.

a única árvore nova cercada de tantas outras, orgulhosas

de sua pétrea precoce velhice, protegidas por um decrépito muro

que muito mal as poupavam do assédio de lagartas gulosas.

nada era dito, nada era ensinado no sentido de fazer entrar o sol.

apenas o silêncio enigmático de uma religião absorvida pelos poros,

cujo deus era algo sem nome que havia no ar e repousava como poeira

sobre as frutas na mesa; que punia a melodia com o extermínio de pássaros canoros

e estabelecia sua vigilância na cumeeira.

por muitos anos assim foi até a consumação do último pilar.

tijolo por tijolo subtraído, o que me parecia construir um castelo inverso,

belo na invisibilidade que me possibilitava tomar as rédeas de suas formas,

livre na idéia de que poderia ser ou não o centro daquele minúsculo universo

onde, antes, havia apenas silêncio e não havia normas.