OUTROS TEMPOS
Houve um tempo
em que eu tinha tempo
e o tempo não me dizia nada
Era o tempo das bolas de gude
das brincadeiras de garrafão
dos esconde-esconde
dos álbuns de figurinhas
dos pega-pegas
e das quadrilhas de São João
Naquele pedaço do tempo
os dias eram alongados
permanentes e continuados
mas as horas eram ligeiras
e quando menos se via
já estava no horário de assistir
Rin-tin-tin, Jonny Quest
e Jornada nas Estrelas
Porém chegou o instante
assim precipitado e de repente
que o tempo dos tempos iguais
espatifou-se em outros tempos
pulverizando e moendo a eternidade
em tantas estilhas e retalhos
que não se conseguiu se consertar
nenhuma vez ao menos jamais
Primeiro minha avó morreu
ano seguinte foi meu pai
um ano depois minha mãe
comigo nos mudamos de bairro
troquei até de colégio
e o tempo em que eu tinha tempo
foi ficando lá para atrás
E os dias deixaram de ser parecidos
e os dias somados viraram semanas
e as semanas meses se tornaram
e de mês em mês se fizeram os anos
e os anos se converteram em décadas
e o tempo passou a me dizer tantas coisas
que hoje sinto, percebo e escuto
com os ouvidos do menino
que guardei na memória
como uma pequena sobra
daquele tempo em que o tempo
era comprido, vasto e alargado
que de vez em quando era permeado
por férias, feriados e bolos de aniversários