À ESQUERDA DAQUELA ÁRVORE

À ESQUERDA DAQUELA ÁRVORE

Victor Jerónimo

Lisboa/Portugal

Não sei se alguma vez isto se passou com vocês

no Jardim Botânico, que é um parque muito calmo

onde se pode sentir sempre próximo uma árvore,

mas tem sempre que cumprir-se uma cláusula...

...que a cidade fique tranquilamente, longe.

O segredo é apoiar-se digamos, num tronco

e ouvir através do ar, que admite ruídos mortos

como se Reis e cavaleiros galopassem entre as trevas.

Não sei se alguma vez isto se passou com vocês

mas no Jardim Botânico, sempre existiu

uma agradável propensão para os sonhos,

porque os insectos sobem pelas pernas,

porque a melancolia desce pelos braços,

até que uma palmada nossa os afaste.

Depois disto tudo o segredo é olhar para cima

e ver como as nuvens lutam entre as copas

e ver como os ninhos lutam pelos pássaros.

Não sei se alguma vez isto se passou com vocês

mas há casais que buscam o Botânico

eles descem de um táxi, ou saem das nuvens

falam normalmente de temas importantes

e olham-se fanaticamente nos olhos

como se o amor fosse um pequeno túnel

para se contemplarem dentro desse amor.

Olhem, por exemplo, para a esquerda daquela arvore

falam e, as suas palavras, param

comovidas a olharem-se e, a mim...

nem sequer seus ecos chegam.

Não sei se alguma vez isto se passou com vocês

porém, é lindo imaginar o que dizem

sobretudo se ele morde um ramo,

ou se ela deixa um sapato entre as pedras,

sobretudo se ele tem uns olhos tristes

ou se ela quer sorrir, porém não pode.

Para mim o rapaz está a dizer

o que se diz muitas vezes no Jardim Botânico

Olha, chegou o Outono

O sol de Outono

E sinto-me feliz

Que linda que tu estás

Sinto-me feliz

Quero-te

No meu sonho

Da noite

Onde escuto as conchas,

O vento no mar

E sabes?

Aqui também há silencio

Olha para mim

Quero-te,

Eu trabalho muito

Faço números

Fichas,

Discuto com cretinos,

Distraio-me e zango-me

Dá-me a tua mão

Agora

Sabes?

Quero-te muito

Penso ás vezes em Deus

Não tantas vezes,

como gostaria

não gosto de roubar

o seu tempo

mais a mais está longe

agora tu,

estás ao meu lado

e, agora mesmo estou triste

estou triste e quero-te

já passaram muitas horas

na rua está um rio

as arvores ajudam

os céus

e que sorte a minha

quero-te

há muito era menino

há muito o que importa

o azar era muito

como entrar em teus olhos

deixa-me entrar

quero-te

deixa-me entrar

quero-te

menos mal, mas quero-te

Não sei se alguma vez isto se passou com vocês

mas pode acontecer de repente e sem aviso,

Porque na realidade trata-se de algo desolador

desses amores de fortuna e azar

que Deus não admite nos seus céus

Reparem que ele acusa-a com ternura

e ela esta contra a cortesia,

Reparem que ele vai falando de recordações

e ela fica consternada misteriosamente.

Para mim ela está a dizer

o que se diz muitas vezes no Jardim Botânico,

Repara no que falaste

Nosso amor

Foi sempre uma criança morta

Mas há pouco, parecia

Que ía viver

E que, venceríamos

Porém nós dois fomos tão fortes

Que o deixamos sem seu sangue

Sem o seu futuro

Sem o seu céu

Uma criança morta

Só isso

Maravilhoso e condenado

Nunca terá um sorriso

Como a tua

Doce onda

Nunca terá uma alma triste

Como a minha alma

Pouca coisa

Nunca aprenderá com o tempo

A usar o mundo

Porém as crianças que assim vivem

Mortos sem amor e

Mortos de medo

Têm um coração tão grande

Que se destroem sem o saber

Tu disseste-o

Nosso amor

Foi desde sempre uma criança morta

E que verdade dura e, sem sombra

Que verdade fácil e, que pena

Eu imaginava que era uma criança

E afinal era, uma criança morta

Agora pára

Pára

Mede a tua fé e recorda

O que podíamos ter sido

Para ele

E que não pôde ser nosso

E mais

Quando chegar Abril

Vê onde estas

Que eu levarei flores

E tu comigo

Não sei se alguma vez isto se passou com vocês

porém o Jardim Botânico é um parque sonolento

que só desperta com a chuva.

Agora a ultima nuvem parou

e molha-nos como se fossemos alegres mendigos.

O segredo está em correr com precaução

para não matar nenhum escaravelho

e não pisar os fungos que aproveitam a chuva

que nascem desesperadamente.

Sem prevenir dou a volta e sigo,

Áqueles que à esquerda da árvore

eternos e escondidos da chuva,

Falando quem sabe, que silêncios.

Não sei se alguma vez isto se passou com vocês

mas quando a chuva cai sobre o Botânico

aqui só param os fantasmas...

Vocês...

podem ir-se.

Eu... fico aqui!...

Escrito em Outubro de 1988 no Jardim Botânico de Lisboa

- Terra Latina, Antologia Poética Internacional (2005) ISBN 85-905170-3-9

- Menção Honrosa, Prémio Litera-Cidade 2013-Poesia, com publicação no livro Cantos Seletos, da Editora Litera-Cidade, Belém/Pa, Brasil ISBN 975-85-64488-37-3

Victor Jerónimo
Enviado por Victor Jerónimo em 29/08/2022
Código do texto: T7594014
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