OLHO NO SANGUE
Minha alma tem pedaços que tenho medo de tocar, de sentir,
de reconhecer que estão lá.
São partes de mim um tanto endiabradas. indomadas, rudes,
assustadoras.
Vez por outra, despertam, como se tivessem saído do coma.
Dão verdadeiro show no terreiro, botam pra quebrar, não
deixam nada quieto.
Isso assusta e, por outro lado, reforça o arsenal,
aquele baú cheio de quitutes e alegorias.
Nessas horas, esqueço as boas maneiras e trago ao palco
as labaredas mais ferrenhas, os temperos mais atrozes,
as garras mais letais que puder convocar.
Viro bicho com sangue no olho e olho no sangue.
Tiro as máscaras que o viver em comunidade impõe,
desnudo aquelas ladainhas que o cotidiano aglutina,
desmascaro rasgos que faziam se passar por chãos íntegros,
aprumados.
Isso dura segundos, por vezes séculos, sei lá.
Então me deparo com as partes assim de todos,
com suas rebarbas, descalabros e encardidos.
Com passos fedidos, mãos atrozes, amores cariados.
Daí misturo todas essas abomináveis coisas
num caldeirão só e fico remexendo e remexendo até sempre.
Quando aquilo não dá mais pra saber o que veio de quem,
sossego e respiro calidamente, sem pressa.
Pra poder, enfim, descansar em paz.