CORPO TRAIÇOEIRO

Olho o caducar dos dias

e o envelhecer das horas

com a mesma incredulidade juvenil

com que lidei com meu finado menino

Como pode o tempo passar

ee eu não me sinto enrugado por dentro?

Trago em mim as apetências da infância

e a igual sede do moço e do rapaz

a me solicitar anseios e desejos

que de satisfazê-los ainda me acho capaz

O expirar dos prazos apenas rói o corpo

oxidando-me as veias antiquadas

a pele bolorentamente manchada

e os esfíncteres de vez em quando desregulados

Mas o coração

este órgão já tão sofrido e machucado

ainda bombeia sentimentos

das funduras às minhas periferias

e embora seminovo ainda ama

e consegue dar conta do recado

(de antemão aviso

ele já foi desde há muito alugado)

Como pôde o corpo me trair desse jeito

sofrer as agruras e o corromper do tempo

e avelhentar sem me pedir licença

permissão, concordância, assentimento

ou qualquer alguma mínima anuência

Quando nasci disseram que eu ia crescer

estudar, amadurecer, trabalhar, ser assalariado

depois casar e ter filhos e lá na frente me tornar avô

mas ninguém sequer me alertou, preveniu ou avisou

que eu teria de envelhecer, mesmo que contrariado

Meu menino e meu rapaz continuam como os deixei

latejantes, vivazes, pulsantes e prolongados

e agora que é que vou fazer com eles

neste corpo desleal que insiste em ficar

adoecido, fraco, exausto e alquebrado?

Meu corpo pode até me abandonar

porém vou continuar com o garoto

e o insistente jovem rapaz

pela vida inteira pela frente

que o tempo puder mais um pouco dilatar

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 22/08/2022
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