CORPO TRAIÇOEIRO
Olho o caducar dos dias
e o envelhecer das horas
com a mesma incredulidade juvenil
com que lidei com meu não finado menino
Como pode o tempo passar
se eu não me sinto enrugado por dentro?
Trago em mim as apetências da infância
e a igual sede do moço e do rapaz
a me solicitar anseios e desejos
que de satisfazê-los ainda me acho capaz
O expirar dos prazos apenas rói o corpo
oxidando-me as veias antiquadas
a pele bolorentamente manchada
e os esfíncteres de vez em quando desregulados
Mas o coração
este órgão já tão sofrido e machucado
ainda bombeia sentimentos
das funduras às minhas periferias
e embora seminovo ainda ama
e consegue dar conta do recado
(de antemão aviso
ele já foi desde há muito alugado)
Como pôde o corpo me trair desse jeito
sofrer as agruras e o corromper do tempo
e avelhentar sem me pedir licença
permissão, concordância, assentimento
ou qualquer alguma mínima anuência
Quando nasci disseram que eu ia crescer
estudar, amadurecer, trabalhar, ser assalariado
depois casar e ter filhos e lá na frente me tornar avô
mas ninguém sequer me alertou, preveniu ou avisou
que eu teria de envelhecer, mesmo que contrariado
Meu menino e meu rapaz continuam como os deixei
latejantes, vivazes, pulsantes e prolongados
e agora que é que vou fazer com eles
neste corpo desleal que insiste em ficar
adoecido, fraco, exausto e alquebrado?
Meu corpo pode até me abandonar
porém vou continuar com o garoto
e o insistente jovem rapaz
pela vida inteira que tiver pela frente
que o tempo puder mais um pouco dilatar