Nelson Gonçalves

Não há mais ninguém na casa

Exceto as tralhas

As telhas

As calhas

As teias

As baratas...

E eu

Que, como sempre,

Sou o último em tudo

Que me apresso em me atrasar

Que me faço disperso,

Mesmo quando o mundo está distante

Que dispenso a ordem das horas

Mesmo quando a morte está perto

Que desprezo a mim mesmo

Mesmo que por um breve instante

Exceto eu, que, imerso em devaneios diversos, faço versos avessos do que quero exprimir

Quero dizer, a casa está vazia

Minha cabeça sob o travesseiro

Não consigo dormir

A cozinha agoniza

A mesa que antes serviam conversas gostosas durante a janta

O almoço

A mesa deixou de existir naquele espaço entre a pia, o fogão e a geladeira

Assim como a matriarca, mãe de todas aquelas almas famintas, que contava histórias do tempo de sua mocidade, aquela vida dura, de extrema pobreza, sozinha no mundo, fazendo de tudo pra que suas dez crianças não morressem de fome.

Depois de morder com vivacidade um pedaço de carne, a voz suprema da velha invade a sala:

"Hoje eu sou rica, graças a Deus! No meu tempo, eu e o avô de vocês ia era pra maré pegar caranguejo, ostra, sururu, siri - tudo que desse pra comer. Carne? Era luxo! A gente só sabia o que era caíco e ovo - e quando tava na fartura! Hoje a gente tem tudo… mai tá! Hoje o povo reclama de barriga cheia. No meu tempo…"

E ia discorrendo sobre o tempo que a miséria assolava nas mesas das pessoas. Ah, a mesa, aquela mesa farta, com a matriarca mastigando um pedaço de galinha guisada, os bisnetos caindo pela casa, aprendendo a ser bípedes, os netos pedindo uns trocados, os filhos sentados à mesa se fartando, e eu…

Que, com a cabeça sob o travesseiro, entro em desespero sentindo a falta que aquela mesa farta faz

Mesa Gonçalves…

Dona Loi

Tudo se foi

Quanta história

Que hoje na memória

Eu guardo

Eu abro

Eu desaguo

Eu sei de cor

De tom

De timbre

De nota

O dono é outro

Todos se foram

Exceto eu, que, acostumado a procrastinar,

Adio o adeus tardio da partida

Porque, ai meu deus, nunca hei de me acostumar à ideia de despedida...

Jey division
Enviado por Jey division em 03/07/2022
Código do texto: T7551483
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