NO INVERNO DA ANTERIOR LONGEVIDADE

Nunca pensei viver tanto,

eu que tanto desejei a imortalidade

Não entro nos derradeiros anos,

pois todos os anos sempre me foram finados

Vou envelhecendo sem pressa

à medida que os dias se acumulam em minha memória,

no ajuntar das horas que meu corpo revela

Não envelheço porque quero,

mas porque continuo vivendo além do século

em que deixei meu menino e os arroubos do rapaz

No descortinar do homem que ora sou,

tenho outro rosto sobre a idêntica face,

apenas mais gasto, enrugado e menos graxo

Nada mudou em mim, eu que já não sou o mesmo,

depois de tantos sorrisos escorridos pelos cantos da boca

e de algumas lágrimas furtadas no olhar da mulher amada

Hoje em meu peito tão remendado,

aproximo-me dos meus mortos feito fronha dobrada

em um leito de um quarto ainda meio desarrumado,

onde passo as noites desagasalhado a remexer velhos retratos

A velhice não pede licença, somente se instala

no sofá puído do tempo, no qual passa os domingos

lendo as notícias dos recentes obituários

Chegou primeiro despercebida como letras miúdas de um contrato,

que assinei sem ao menos ler seus mínimos detalhes,

e agora, sorrateira e manhosa,

abriga-se por baixo das sombras dos ponteiros dos relógios,

e quando me dei conta ela já dormia na cama onde antes era meu lado

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 03/06/2022
Reeditado em 04/06/2022
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