DA ALMA
Minha alma não fala os dialetos dos homens
mas a língua dos deuses
e já me habitava muito antes do menino
e continuará muito além depois do velho
Da minha alma
só conheço a superfície
que se oculta por detrás
do rosto e debaixo da pele
salpicada de pequenas manchas senis
Enquanto rastejo
ela delira e voa
Enquanto me seguro
ela se desgarra e pula
Enquanto me assombro e choro
ela gargalha e me despreza
Enquanto me sacio de migalhas
ela tem a fome de Ícaro e dos infinitos
Minha alma se apresenta
nos sonhos dos sonos esquecidos
e a tudo que a mim me é vedado
nos porões escuros da memória
e no caos que já existia
antes de algum princípio
predicado ou verbo
O que minha alma detesta e não suporta
são espelhos e o desaparecendo do corpo
neste sumiço lamentoso do tempo
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Originariamente publicado no livro A VIDA COMO UM ESPANTO: inventário de um existir humano (2022), editado pela Editora Labrador (SP)