A ÚLTIMA NOITE DE UM MENINO

Agora que todos se foram

os parentes os amigos os vizinhos

e os transeuntes das horas vagas

fica o garoto e a tranquilidade da casa

alheia ao seu dorido interno silêncio

Aquietada dos borburinhos festivos dos instantes anteriores

a casa retorna à dormência peculiar das edificações

e suas habituais rotinas de tijolos madeiras e cal

Gradualmente o dia regressa ao seu ritmo diário

muito embora seja noite e seja tarde no adiantado das horas restantes

apenas registradas no relógio antigo da parede da sala

Os sobreviventes dormem o sono dos justos,

o garoto não

O tique-taque cadenciado e intermitente

ecoa pelos espaços calados do recinto doméstico

para logo se dissolver na surdez das portas e das janelas fechadas

(encarcerado o tempo inexiste ele se não houver

quem lhe dê qualquer mínima atenção)

De cá de dentro entretido de recordações

o garoto esquece das horas

bem como dele o tempo não lhe possui qualquer lembrança

Estranha aquela irmandade de ambos

que se negam entre si na cumplicidade compartilhada

dos seus aprisionamentos

Como o pensar é o oposto do sono

é o garoto o único então acordado

Naquele abandonamento termina ali uma infância

Por sobre a cama não forrada do dia anterior à sua primeira insônia

deixaria para amanhã ou para mais depois

aprender a dobrar e ajeitar lençóis

como tantas outras coisas que sua mãe jamais o ensinou

Um cão ladra vários, o acompanham

naquelas tardias horas em que um homem passa

defronte à casa onde agora vegeta o garoto

privado do sono e das companhias

A luz acesa do quarto ilumina através das frestas

o passeio do desconhecido homem

Em breve os cachorros sossegarão seus latidos

restando apenas o abafado grito do garoto

que nem sequer incomoda os animais da rua

Quando estiver apagada a luz

e inexistir mais os cômodos da casa e seus residentes

do lado inverso do Universo e em seus confins

haverá de haver um outro garoto a espreitar nos céus

o apagar do brilho de mais uma estrela morta

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 05/04/2022
Reeditado em 05/04/2022
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