A ÚLTIMA NOITE DE UM MENINO
Agora que todos se foram
os parentes os amigos os vizinhos
e os transeuntes das horas vagas
fica o garoto e a tranquilidade da casa
alheia ao seu dorido interno silêncio
Aquietada dos borburinhos festivos dos instantes anteriores
a casa retorna à dormência peculiar das edificações
e suas habituais rotinas de tijolos madeiras e cal
Gradualmente o dia regressa ao seu ritmo diário
muito embora seja noite e seja tarde no adiantado das horas restantes
apenas registradas no relógio antigo da parede da sala
Os sobreviventes dormem o sono dos justos,
o garoto não
O tique-taque cadenciado e intermitente
ecoa pelos espaços calados do recinto doméstico
para logo se dissolver na surdez das portas e das janelas fechadas
(encarcerado o tempo inexiste ele se não houver
quem lhe dê qualquer mínima atenção)
De cá de dentro entretido de recordações
o garoto esquece das horas
bem como dele o tempo não lhe possui qualquer lembrança
Estranha aquela irmandade de ambos
que se negam entre si na cumplicidade compartilhada
dos seus aprisionamentos
Como o pensar é o oposto do sono
é o garoto o único então acordado
Naquele abandonamento termina ali uma infância
Por sobre a cama não forrada do dia anterior à sua primeira insônia
deixaria para amanhã ou para mais depois
aprender a dobrar e ajeitar lençóis
como tantas outras coisas que sua mãe jamais o ensinou
Um cão ladra vários, o acompanham
naquelas tardias horas em que um homem passa
defronte à casa onde agora vegeta o garoto
privado do sono e das companhias
A luz acesa do quarto ilumina através das frestas
o passeio do desconhecido homem
Em breve os cachorros sossegarão seus latidos
restando apenas o abafado grito do garoto
que nem sequer incomoda os animais da rua
Quando estiver apagada a luz
e inexistir mais os cômodos da casa e seus residentes
do lado inverso do Universo e em seus confins
haverá de haver um outro garoto a espreitar nos céus
o apagar do brilho de mais uma estrela morta